Uma furtiva lágrima

30/11/2020

Durante a semana, desde que teci comentários sobre o mais recente romance de Nélida Piñon, foram recorrentes as mensagens que recebi sobre a autora, e, em especial, o seu livro de memórias Uma furtiva lágrima. O fato de que esses comentários estivessem relacionados a este livro, e não a Um Dia chegarei a Sagres, objeto de minha resenha, gerou em mim uma curiosidade: por que tanta alusão a Uma furtiva lágrima, sobre o qual apenas afirmei possuir qualidades estéticas notáveis?

Numa dessas inquietações intelectuais de gosto meramente especulativo, ocorreu-me concluir que o fato se prendia a se tratar de crônicas, em que pese a nítida inclinação para o memorialismo, gênero que tem ganhado nos últimos 30 ou 40 anos um imenso prestígio. Não sem desprezar, por óbvio, a hipótese de que tal motivação ainda se devesse à beleza do título, Uma furtiva lágrima, cuja força expressiva desliza do poético para o confessional, num momento em que são tantas as razões para o pranto discreto, que se faz a furto, como se se procurando passar despercebido.

Bibliofilia à parte, pensei na hipótese de falar sobre o livro em coluna futura, o que faço hoje motivado, mais ainda, pelas circunstâncias de Nélida Piñon ter arrebatado com Uma furtiva lágrima, na quinta-feira 26, mais um prêmio Jabuti.

O livro é, como já o tinha afirmado, de uma beleza comovente, desses que prendem o leitor por razões que exorbitam suas qualidades formais (embora literatura seja, antes de tudo, isto!) e ganhe musculatura pela ternura que emana de suas páginas, constituindo um exemplo raro nos últimos anos do que se pode identificar como função evasiva da literatura em seu sentido positivo. Explico-me: o livro não representa sob qualquer aspecto um caminho para a fuga da realidade, pelo viés com que se leem comumente certos autores que levam ao esquecimento circunstancial da angústia e das dores tão comuns nos dias de hoje. Não, longe disso. Não é livro de entretenimento.

Dedicado in memoriam ao inesquecível amigo Gravetinho Piñon, segundo palavras com que a própria Nélida reporta-se ao cão a quem dedicou o seu amor mais verdadeiro e mais “humano”, Uma furtiva lágrima leva o leitor a fugir do seu lado torto, pragmático e egotista em favor de uma experiência de embelezamento interior que só o milagre da arte e da literatura é capaz de operar com tanta intensidade e de maneira tão definitiva, ainda que na eternidade de um instante – que me perdoem o que vai de paradoxal nisso.

Exemplo prático do que afirmo está nas primeiras páginas do livro, no texto intitulado Sentença, quando a escritora se volta para a experiência incomunicável de ter sido desenganada por erro médico a poucos meses de vida. Aí, depara-se o leitor com a dignidade quase sobre-humana da narradora para dizer da morte que se avizinha e da capacidade para domá-la a tempo de enxergar nos detalhes mais bizarros o significado de toda uma existência: “Pensei em fazer um diário breve, um resumo dos meus últimos dias, segundo sentença do oncologista que, com parcimônia e convicção, antes mesmo dos resultados dos últimos exames, foi conclusivo. Eu teria entre seis meses e um ano. Retornei a casa disposta a me preparar”.

Em meio à angústia, e ao silêncio só rompido ante a presença de Gravetinho (e Suzy, uma cadelinha igualmente amada), Nélida reúne forças para soerguer-se, impávida, contra a brutalidade do mundo: “… Não ignoro os efeitos do mal radical e tampouco desejo que se faça desta exposição visceral instrumento de arte. E isto porque sou vulnerável aos estertores oriundos da inquisição, do tráfico negreiro, do holocausto, dos genocídios sistemáticos das guerras religiosas, da limpeza étnica, do estupro ideológico, dos porões da ditadura”.

Um livro raro, que não se deve desconhecer.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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