Frases malditas

18/06/2022

“Não sou o tipo de pessoa que enxerga a humanidade com bons olhos, minha criança”- revelei. “Percebo mais a imperfeição humana do que a sua limitada e pouca qualidade. Destarte, ao contrário de muitos que ‘sonham com um mundo melhor’, não tenho a menor pretensão de mudá-lo, ou mesmo acreditá-lo possível” – sentenciei.

Pude perceber o seu desencanto a fazer morada na sua face naquele momento; as suas expectativas quanto a mim foram dizimadas naquele exato instante. Como toda pessoa de “pensamento positivo”, a realidade crua do mundo não é algo que ela queira tragar. É exatamente por isso que o mundo está cheio de podres livros de autoajuda e coisas patéticas desta natureza.

Geralmente, o ser humano moderno só quer ouvir falar em líricos sois, nuvens e florezinhas. Quando se depara com uma mentalidade aportada na realidade da vida; com suas agruras, imperfeições e todo o resto, a criatura melosa opta por desviar-se do referido indivíduo e, com isso, da sua triste “má” notícia: a revelação de que o mundo não é esse colorido que os iludidos criam para fugir deles próprios e do mundo.

Assim como a minha garota, muitos são os que vivem do autoengano. Ah, e isso, aqui, inclui também os igualmente chatos pessimistas. Esse tipo me soa como um alguém que, como o do primeiro tipo – os otimistas -, quer chamar atenção para si, ainda que por um método distinto.

Recordo-me quando li o macabro Edgar Allan Poe (1809-1849), estupendo contista estadunidense. Lembro-me quando li os filósofos alemães, Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Arthur Schopenhauer (1788-1860). Não são, definitivamente, leituras para quem gosta de ler apenas coisas que massageiam o seu frágil e tolo coração de manteiga derretida.

Tais renomados escritores, que, em tempos de outrora já foram aclamados pelo público e pela crítica, hoje são lidos por poucos. A massa, ao invés destes autores, opta por livros leves e pueris, como os que já citei anteriormente. É um retrocesso literário sem precedentes.

Mas a minha garota ainda continuava ali. Apesar de ler e pensar amenidades, rasas concepções, era uma boa pessoa. Toda mente leve é feliz. Bastava-lhe postar alguma mensagem de pensamento positivo em suas redes sociais ao começar mais um dia e pronto… E não é assim mesmo que a maioria age nos dias de hoje? Tenho uma porção delas como “amigas”. Escamoteiam a dura realidade e vivem no mundo do “faz-de-conta” da ignorância.

Para quebrar o gelo oriundo daquele silêncio promovido pelo embaraço, coube, ali, abrirmos uma garrafa de cerveja, ouvirmos música e conversarmos sobre as trivialidades inerentes à nossa contemporaneidade. Sim, beber e ouvir, eis a solução para permanecer na superficialidade da vida. O que passar disso, é tédio, incômodo e desespero.

Entretanto, naquele instante, a extinta banda de rock Utopia, me traz de volta a questão existencial no seguinte trecho: “Eu não vejo mais um horizonte infinito/Já não sinto mais suas curvas e gemidos/ Eu já não posso crer, no que eu quero tanto dizer/ Me coloco frente a frente com um espelho/ E novamente me apanho fingindo/ Para mim mesmo mentindo, de mim mesmo fugindo/ Quero ouvir frases malditas/ Quero ouvir palavras nunca ditas a ninguém/ Quero ouvir frases malditas/ Quero ouvir palavras nunca ditas a ninguém.”

Ouvir “frases malditas”, aqui, não significa ser um choramingão, um lamurioso, mas reconhecer que elas, as frases e vidas malditas, são necessárias e inevitáveis na senda do existir dos que reconhecem as ações que incidem sobre a história de cada um.

E ela voltou a ficar triste com a minha negatividade… e isso não muda em nada o mundo e como o vejo…  “Mais cerveja, querida, mais cerveja, por favor… embarguemo-nos, como sugeriu Baudelaire!” (1821-1867) – propus. Ela assentiu…

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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