Presságio

03/06/2023

‘‘Acorda, amor. Trouxe pastel’’ – eu disse, olhando-a espreguiçar-se, metendo a palma da mão a esfregar um dos olhos. Estava linda, como toda mulher naturalmente bela, que não recorre à maquiagem para acentuar a sua altivez feminina. Ela, embora fosse uma amante da vaidade, não necessitava de tais artifícios cosméticos.

Estava vestida apenas com uma das minhas camisetas (cuja estampa era da excelente banda inglesa de heavy metal, a Iron Maiden). Aquilo era inexplicavelmente atraente, posto que é de praxe da mulher vestir nossas camisetas para dormir ou cuidar nos afazeres domésticos.

Sentei-me próximo ao portão e, enquanto ela comia, ocupei-me fumando um cigarro e bebendo das cervejas que comprei antes de ir para o trabalho – de onde, agora, acabara de regressar. Como eu a amava, senhor ou senhora que acompanha estas curtas linhas que escrevo.

O cheiro de cigarro impregnava toda a casa. A cerveja derramada no chão também cumpria o mesmo papel. ”Era o meu cheiro”, ela me disse isso uma vez. E agora me recordo de que, para ela, o cigarro, a cerveja e o meu perfume compunham a simbiose inebriante, ainda que apenas para ela. E isso me era suficiente.

Fumei mais um cigarro… Desta vez, para ocupar o tempo que a insônia me reservara. Acho que fumei meia carteira enquanto ela dormia profundamente depois de ter devorado aquele pastel. E eu ali, sem sono e com a mente divagando, recusando-se a deixar-me sossegar.

Abri a porta cuidadosamente e fui olhar para o céu que nunca admiro durante a correria do dia. Da esquina, um bar baixava sua última porta aberta, expulsando, assim, dois amigos que sumiram em suas respectivas motos. ‘‘Que vida boa é a da boemia’’, pensei, ainda que não desejando estar naquele bar naquele momento.

A vida daqueles homens – e da dos outros bilhões de homens do restante do mundo – parecia mais feliz, completa e alegre do que a minha. Por que a existência nos parece sempre tão solitária, ainda que acompanhada?

Entrei, tomei banho, abri uma outra cerveja, acendi mais um cigarro e pus-me a olhar o breu daquela sala. De lá, a via dormindo. Era um ponto estratégico, que me permitia olhar para todos os cômodos da casa quente e penosa.

A visão, ainda que obnubilada, não me impedira de reconhecer a silhueta feminina sob o lençol. Sorri de canto ao vê-la lindamente sussurrar por conta de um pesadelo. Quando, de repente, ela acordou e, aos gritos, correndo ao meu encontro, chamando-me pelo nome, chorou nos meus braços, agarrada ao meu pescoço. ‘‘O pesadelo fora horrível para chegar a tanto’’ – pensei enquanto a consolava

Hoje, velho e ainda existencialmente triste, suspiro ao compreender que não foi pesadelo, mas presságio. Aquela noite fora a noite do início do fim, e eu não percebi. Desde então, não comprei mais pastel para nenhuma outra mulher…

Hoje, por conta desta terrível desventura, passei a detestar ainda mais qualquer alusão, metáfora, parábola e/ou conotação sobre o amor; pois faz-me lembrar dela. Detesto frases de efeito, simulacros, semiprontos e afins; pois faz-me lembrar dela. Gosto, isso sim, do abrupto original, mesmo que em palavrões, contendas e discórdias.

Gosto da má notícia, pois, ou contrário do romantismo contido na frase clichê de qualquer relacionamento, esta é, indubitavelmente, verdadeira. Foi assim que percebi que ”a verdade” está mais para a desgraça do que a mentira para a doçura da qual se deseja o engodo.

Eu não mais existo desde então, mas se existisse, diria isso na cara dela, que me fez perecer. Aos vivos, do fenecido, um conselho: cuidado com os moldes aos quais acostumaram a afagar os vossos ouvidos e vaidade…

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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