Mãe do medo e da covardia*

17/05/2025

“Será que poderia haver um campo mais amplo do que… um tratado sobre a ignorância?”, Francesco Petrarca (1304-1374)

 

O autor é conhecido por suas incursões no campo do conhecimento, tendo publicado livros incontornáveis sobre o assunto, a exemplo do clássico “O polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag”.

Mas é seu livro mais recente que vem, particularmente, em boa hora, como a apontar caminhos para a compreensão de um tempo marcado por tantas contradições e fundamentalismos que se contrapõem à racionalidade como a entendemos em termos objetivos.

Refiro-me a “Ignorância, uma história global”, Editora Vestígio, 2024, do historiador britânico Peter Burke, cuja leitura é mais que recomendável num momento em que se assiste à produção da ignorância como uma ameaça à democracia e à preservação do Estado Democrático de Direito e aos pressupostos do que se convencionou chamar de Iluminismo, ou seja, a ideia setecentista de que o conhecimento é a condição “sine qua non” para o progresso material, espiritual e, frise-se, moral.

Como a epígrafe que o autor escolheu sugere, curiosamente extraída de uma fala famosa do político brasileiro Leonel Brizola, durante um debate, “A educação não é cara. Cara mesmo é a ignorância”, o livro constitui um criterioso levantamento da história da ignorância e  de como a ausência de conhecimento pode explicar o mal-estar da realidade contemporânea mundo afora, num cenário de ressurgimento de movimentos de extrema direita em diferentes países, bem na perspectiva do que ocorre no Brasil hoje.

Casado com uma brasileira, a também historiadora Maria Lúcia Pallares, professora de Cambridge, com quem escreveu um livro sobre Gilberto Freyre, Peter Burke é bom conhecedor do país, que visita com certa frequência, razão por que alude ao passado recente da política nacional e da figura do ex-presidente Jair Bolsonaro como exemplo do que existe de pior em termos de ignorância, aquela que leva (palavras minhas) tanta gente a defender o “terraplanismo”, a bater continência para pneus e professar a volta do regime militar como caminho para o que considera a definitiva redenção do Brasil.

É nesse sentido, pois, que, no capítulo 11, intitulado “A ignorância na política”, Burke reporta-se ao ex-presidente como verdadeiro exemplo de ignorância presidencial, bem como o seu guru norte-americano, Donald Trump, sofrendo “de ignorância em sua forma mais aguda, a de nem mesmo saber que nada sabe”.

Como prova da absoluta ausência de conhecimento do “mito” da extrema direita brasileira, cita a crise do novo coronavírus de 2020, destacando a recusa de ambos, Jari Bolsonaro e Donald Trump, em compreender a seriedade do problema, criticar os epidemiologistas e defender o uso de medicamentos de eficácia duvidosa, como a hidroxicloroquina.

A abrangência do levantamento e o alcance da análise, no entanto, são muito maiores. Burke discorre sobre as diferentes formas de ignorância, de como elas se manifestaram no transcorrer da história, como cada época emite juízos imprecisos sobre seu passado: os renascentistas consideravam a Idade Média como uma era das trevas, o chamado Século das Luzes procurou vencer a superstição e a religiosidade, impondo a razão e o cientificismo como alternativas únicas para os problemas da sociedade. Vai além e chega ao mundo hodierno, enredando-se ele na realidade hiperconectada e um tanto perdido em face de suas consequências ainda imprevisíveis.

Em palavras ligeiras, portanto, “Ignorância, uma história global”, de Peter Burke, é leitura de que não se deve prescindir se se tem qualquer pretensão de identificar por que, como, onde nascem as monstruosas ameaças da atualidade no campo da religião, da ciência, da política e dos negócios.

Com bela e lúcida apresentação de Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, o livro tem no Brasil uma edição extremamente bem cuidada, tradução rigorosa de Rodrigo Seabra e, mais importante, um significado histórico que o credencia a figurar entre as grandes produções intelectuais de 2025. Confiram.

*O título da coluna dialoga com um verso de Chico Buarque de Hollanda.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

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