A fera sem nome

21/10/2023

Foi Schopenhauer quem definiu, justamente por não ter o termo em mente, a ansiedade. Em seus diários, reveladores de sua personalidade, lemos que ele não dormia sem um punhal e uma pistola, pois estava convicto de que seria atacado por alguém ou alguma coisa.

Numa dessas passagens, diz-nos o filósofo que quando somos jovens e alguém bate à porta, um entusiasmo se apodera e logo perguntamos: quem será? Com o passar dos anos, porém, a pergunta muda e perguntamo-nos: o que será?

Não consultemos os manuais de psicologia. Não estejamos presos ao mal das definições. Pensemos em um homem solitário, em meio a seus muitos livros. Incompreendido por todos, até por sua família. Renegado pelos pares da universidade. Sem muitos amigos. Vivendo em um cubículo.

Agora passemos a investigar um dia comum na vida deste homem. Ele vive de uma pensão modesta: não pode se dar ao luxo de gastar mais do que recebe, sob pena de não ter ninguém a quem recorrer. Ele pensa na morte. Filosofa sobre ela. Mas mais importante: ele pensa na vida, no seu legado, se é que haverá um legado.

Apesar da solidão em que vive, ele está compondo uma obra, sua magna obra. A cada nova página, um ramo de esperança quer despontar, mas ele sabe que a esperança pode ser enganosa. Sabe que não será compreendido por seus contemporâneos. E, no entanto, a cada nova linha que escreve, vê nascer uma visão de mundo original, como que escondida dos demais, como se revelada somente a ele.

Será que haverá tempo para terminá-la? Será que ele ficará satisfeito? Será que é possível, como disse Flaubert, concluir sem finalizar? Ele olha o seu cão, fiel amigo. Talvez aquele velho ranzinza tenha, por dentro, afetos insuspeitos.

Mas à noite, ao apagar da vela, a fera volta; então nosso filósofo esquece a pena, o cão, a obra e o legado, e busca o sabre, a faca, e se prepara para o desassossego. Mas a munição não o arma para enfrentar os pesadelos. Eles vem quando a pálpebra se fecha, e as mãos ficam entregues: a cabeça mergulha no submundo.

Ao acordar, já não se lembra do que viu, mas sente que algo está por vir. E é esse ” está por vir” que o atormenta, porque não conhece a natureza do que virá. Não sabe o que a vontade, cega como ele a entende, guarda para o seu fim. Vive a ânsia do personagem de Henry James: A fera na selva, a fera sem nome.

Os truques do destino. O que vem parece tão inofensivo, feito numa senhora velha, sem forças, sem nenhum poder ofensivo, sem prestígio, numa palavra: sem os meios para destruir um filósofo do quilate dele. Mas, diferente da natureza, ela não é cega: ela enxerga, e quer ver demais. Ela quer saber o que está por trás do homem de cabelos e modos esquisitos.

Ele se revolta com a indiscrição e age. Expulsa a intrusa que, num passo errado, cai escada abaixo. E ele agora terá de pagar. É julgado e condenado a pagar uma pensão vitalícia, tirada de sua modesta pensão.

E assim cumpre-se seu maior temor: o que será que está atrás da porta? É a vida, sem grandes arroubos, sem grandes suspeitas. A vida como ela é.

 

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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