A visita – parte III – final

28/03/2024

Passados alguns imprecisos instantes, já não mais sabia dizer quantas horas se passaram desde a sua chegada à minha morada. Estava agora bêbado e ainda mais confuso. Ela também me parecia igualmente torpe, pelo álcool e pela situação. Nós éramos, agora, dois seres à deriva no mar cruel que é a vida.

Ao ir ao banheiro, notei peças íntimas espalhadas pela casa. Um sutiã sobre os livros e, mais adiante, calcinha e meias num recanto da cozinha, já próximo à porta do banheiro. Pontas de cigarros se faziam em todo lugar. Também havia cerveja derramada e dois copos quebrados. Mais parecia uma arena de guerra o meu covil.

Foi quando percebi que fui acometido pela famigerada amnésia alcóolica, dessas que, no máximo, deixam apenas lapsos vagos e rápidos, que vão e vem numa velocidade assustadora e perturbadora. Não sei como fomos parar na cama. Também não sei ao certo se transamos. Havia apenas uma mulher nua na minha alcova; o que não significa necessariamente sexo por certo. Talvez tivéssemos ambos, apagados de um todo antes da consumação da cópula.

Ao voltar do banheiro, ela estava acordada. Parecia serena. Estranhei a sua aparência pacífica e calma, como se nela não houvesse qualquer tipo de ressaca: alcoólica ou moral. Para minha surpresa, não fez sequer menção de querer conversar. Sorriu, fez sinal com a mão para que eu deitasse. Deitei. Ela repousou a cabeça no meu peito e, passados alguns segundos, voltou a dormir ali mesmo.

— Sabe o que eu quero? – disse ela ao acordar e logo se arrumar depressa

— Voltar a viver, meu caro ex-colega! – sentenciou

— Voltarei próxima semana, e não me diga que não! – falou com voz um tanto imperativa.

Eu nada disse. Acendi um cigarro, peguei uma cerveja na geladeira e assisti a ela terminar de se aprontar.

Quem sou eu para impedir uma mulher de ‘‘voltar a viver’’? Que assim seja.

— Amor, coloca essa música aqui pra tocar! – ela apontou a música com o dedo…

‘‘Quero ir na fonte do teu ser

E banhar-me na tua pureza

Guardar em pote gotas de felicidade

Matar saudade que ainda existe em mim

Afagar teus cabelos molhados

Pelo orvalho que a natureza rega

Com a sutileza que lhe fez à perfeição

Deixando a certeza de amor no coração

Deixa eu te amar

Faz de conta que sou o primeiro

Na beleza desse teu olhar

Eu quero estar o tempo inteiro…’’

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

MAIS Notícias
Quando a ignorância e o fanatismo recrudescem
Quando a ignorância e o fanatismo recrudescem

  ‘‘A esquerda brasileira — toda ela — é um bando de patifes ambiciosos, amorais, maquiavélicos, mentirosos e absolutamente incapazes de responder por seus atos ante o tribunal de uma consciência que não têm.’’ - Olavo de Carvalho   Que estamos vivendo em...

O reduto dos últimos
O reduto dos últimos

  ‘‘A leitura de todos os bons livros é uma conversação com as mais honestas pessoas dos séculos passados.’’ -  René Descartes Em um mundo idiotizado e idiotizante, poucos são os lugares aos quais possam ser considerados dignos de se fazer presente. A nossa...

A nova era da espiral do silêncio
A nova era da espiral do silêncio

Em uma busca rápida na internet, o amigo leitor encontrará essa expressão, basicamente, na seguinte definição: ‘‘A espiral do silêncio é um conceito desenvolvido pela teórica da comunicação Elisabeth Noelle-Neumann, que se refere ao processo pelo qual as opiniões e...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *