Em mais um de seus inqualificáveis desatinos, o presidente Donald Trump anunciou, no domingo 4, a intenção de ampliar e reabrir Alcatraz, o presídio famoso incrustado numa ilha da baía de São Francisco, na Califórnia.
A notícia, que poderia nada interessar a quem, como este escriba, não tem com os Estados Unidos qualquer relação – e nutre pelo país assumida antipatia, diga-se em tempo – desperta no amante do cinema, contudo, um tipo de sentimento que transita da indiferença ao comovido desconforto. Digo por quê.
Trata-se de uma das mais curiosas locações cinematográficas, cenário de alguns filmes clássicos sobre o sistema prisional americano, bem na linha de “Papillon” (1973), “Um sonho de liberdade” (1994) e, por óbvio, “Alcatraz, fuga impossível” (1979), com emblemática direção de Don Siegel e atuação soberba de Clint Eastwood.
Baseado numa história real, a tentativa de fuga de Frank Morris e dos irmãos Clarence e John Anglin, do então considerado presídio de segurança máxima do Estados Unidos, o filme marcou época em produções do gênero, não sem razão considerado um dos melhores de 1979.
Plasmado no livro conhecido de J. Campbell Bruce, o roteiro foi confiado a Richard Tuggle, que o desenvolveu à perfeição naquilo que é a essência da narrativa livresca: a capacidade de prender o leitor, de torná-lo completamente entregue à atmosfera dramática da história, fazendo-o mergulhar no conflito existencial de um homem determinado a superar a todo e qualquer custo o cerceamento de sua liberdade doentia, ela também alvo de desumanos mecanismos de punição legal, bem na linha do que o filósofo Micheal Foucault examina exemplarmente bem no incontornável “Vigiar e Punir”.
Sob este aspecto, por sinal, é que se pode fazer a única restrição ao roteiro do filme: a indiferença diante das razões que antecederam o fio condutor da história, leve-se em conta que se trata de uma cinebiografia, gênero em que o documental é elemento indispensável na tessitura da narrativa fílmica.
Ao optar por contar a história de Frank Morris pelo viés psicológico, portanto, o que faz com notável capacidade de análise e visível domínio da fundamentação teórica acerca dos desajustes psiquiátricos da personagem (ou personagens!), Don Siegel, enquanto realizador, submete-se rigorosamente ao que o roteiro estabelece — e não responde às perguntas do espectador ao final do filme: Quem foi Frank Morris? O que fez? A que se prende a sua incansável e quase irracional busca da liberdade? No livro de J. Campbell Bruce essas curiosidades são clarificadas para o leitor, porque indispensáveis para o completo entendimento da história.
Fosse uma mera obra de ficção, “Alcatraz, fuga impossível” poderia ser considerado, no gênero, um filme quase perfeito do ponto de vista cinematográfico. A tensão dramática advinda das estratégias narrativas escolhidas por Don Siegel é algo que sobrepuja clássicos sobre o sistema prisional americano*: os recursos de som e luz, a angulação da câmera e seus movimentos, a exploração do silêncio como elemento dramático, o enquadre muitas vezes claustrofóbico, a duração dos planos etc., tudo da narrativa fílmica é trabalhado por Don Siegel com esmero e rigor. Há momentos no filme, como nos planos mais abertos, em que o próprio presídio parece adquirir o status de personagem, ganhar vida e delimitar o curso da história com a impassibilidade de um membro de tribunal.
Uma das mais concorridas atrações turísticas de São Francisco, Alcatraz guarda ainda seus mistérios, sua realidade oculta, seu desumano fascínio. Visitei-o há alguns anos, adentrei seus corredores, salas, celas. Gravei vídeos, fotografei à exaustão sua tristeza, toquei, emocionado, suas paredes ainda úmidas e sujas – o ferro frio de suas grades amarelas. Adentrei masmorras, entreguei-me em ouvidos para a música dos ventos, vindos da baía, em seus espaços vazios. Mas, acima de tudo, milagre do cinema, revi, gravadas na tela das retinas, as imagens inesquecíveis do belo filme de Don Siegel.
Trump delira. Alcatraz pertence, hoje, ao mundo da arte. E haverá de ter para sempre abertas suas grades, amarelas – e dolorosamente tristes.
*”A rocha”, (1996), de Michael Bay, com Sean Connery e Nicolas Cage, e “O homem de Alcatraz” (1962), de John Frankenheimer, com Burt Lancaster, são dois dos vários filmes ambientados em Alcatraz.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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