Conto a Dalton Trevisan

13/12/2024

“No entanto, o livro que eu lesse, o livro na mão, era sempre o teu seio! Tu estavas no morno da grama, na polpa saborosa do pão… Mas agora encheram-se de sombra os cântaros. E só o meu cavalo pasta na solidão”.

São os versos de Quintana que voltam em teu lugar desde que partiste. Ficaram tantas palavras por dizer…

Como as imagens bruxuleantes na parede da caverna de Platão, fui lentamente construindo a tua figura de mulher. Pareceste-me belíssima desde o primeiro encontro. Desejei-te como um menino pobre à torta de chocolate no vidro da confeitaria. Jamais me julguei capaz de conquistar-te, tão jovem e fascinante na brejeirice dos teus pouco mais de vinte anos.

A idade a nos separar.

Pus-me a traçar planos, a idealizar uma forma de me aproximar de ti, outros abismos a impor distância.

Hoje de manhã, ao abrir o armário da cozinha, dei com a pequena cesta de vime em que guardavas quinquilharias e remédios para eventualidades. Há dias não via a tua imagem tão viva à minha frente, não sentia de novo aquele beliscão na alma, o desejo louco de abraçar-te como o fiz na primeira vez.

É incrível como estás ainda presente nas poucas coisas que deixaste aqui.

Lembrei de ti com um misto de saudade e alívio, agora que o tempo, sabiamente, vai colocando o passado em seu devido lugar.

E era apenas uma cesta de vime.

Custa-me entender por que se tornam inimigos os ex-amantes. É a precariedade dos homens, a ingratidão para com a felicidade que não foi eterna, a incapacidade para o perdão?

É assim que parece estar ocorrendo conosco, tão entrelaçados na vida um do outro, tão cúmplices nos muitos planos que fizemos juntos.

Hoje te imagino uma mulher feliz, entregue aos amores de circunstância. Não se trata de volubilidade, por favor, entende. Não emito com este pensamento um juízo, nem te condeno. É o Eros de Platão, está no Banquete. Nada diz do Eros da desordem, da sublimação dos instintos.

É o Eros da busca daquilo que nos falta e que, quando possuímos, faz-nos sentir menor e escravos de nós mesmos, enquanto durar a aceitação. O Eros platônico nos adverte de que o segredo da existência está em procurar o novo. Soubeste como ninguém compreendê-lo.

Tão-logo o teu carro desapareceu na distância, dirigi-me à casa dos cães para soltá-los, a fim de que sentissem teu cheiro pela última vez. Abri a portinhola e não quiseram sair, como que adivinhando que também eles te haviam perdido. Demoraram até que saíssem em disparada pelo jardim. Em desespero, farejavam pelas frestas do portão, como se querendo tragar através delas o teu perfume, evanescente como teu corpo na estrada.

Custou-me subir a escada até o nosso quarto, deparar com o vazio enorme que deixaste ao partir. Num derradeiro carinho, que me dilacerava a alma, ainda toquei a madeira do armário em que, até bem pouco, estavam as tuas roupas.

Coração sangrando.

Através da pequena janela do banheiro, alforriei o olhar para o horizonte. Caía mansamente a tarde.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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