Na solidão da mata

04/04/2020

Parente remoto, pela parte do meu pai, entrou para o folclore da família pela fragilidade com que, aos 80 anos, assumia seu compreensível desamparo:

– Sou sozinho neste mundo, não tenho nem pai e nem mãe!, dizia, mal disfarçando seu quixotismo, sempre que algum problema o afligia.

Nesses dias de horror em face da pandemia do coronavírus, quando a maioria de nós se recolhe em quarentena que não sabemos o quanto durará, lembrei dessa personagem atormentada com um misto de saudade e um certo desconforto, como que compreendendo o desamparo e abandono a que se dizia condenado. A psicanálise explica.
A bem da verdade, é bucolicamente privilegiado o meu isolamento, em meio à mata que circunda o sítio de uma forma a um só tempo bela e ameaçadora. Não seria na floresta que habitam os espíritos do improvável?, ocorre-me lembrar, outra vez, a leitura psicanalítica dos contos de fada, à maneira do que fez, exemplarmente bem, diga-se em tempo, Bruno Bettelheim em livro incontornável no gênero.

O certo é que diante das grandes crises todos nós desenterramos, das profundezas do nosso mundo interior, quase sempre carregado de fantasmas, as narrativas mais reveladoras, os mitos mais indisfarçáveis pelos quais desenhamos o que pensamos ser a realidade.

E eis-me aqui, buscando nos livros que leio e nos filmes a que assisto, se não a explicação para o inexplicável, um pouco de alívio para a solidão a que me vejo condenado. Assim, na companhia de seres mágicos que ressignificaram a vida, gente da estirpe de Cervantes, Jorge Luis Borges, Shakespeare, tenho tocado os dias sob o efeito da indisfarçável angústia que assola o país e o mundo, menos, claro, o super-homem chamado Bolsonaro.

Ironia à parte, a casa por varrer e a louça por lavar (o segredo é “sujou, lavou”), de uma vez por todas, tenho de reconhecer, compreendo o que quer dizer a máxima tola de que a ocasião faz o ladrão.

E me surpreendo capaz de tocar a vida de mim para comigo mesmo, enquanto, lá fora, da alta copa das árvores frondosas – já posso ouvir o farfalhar das folhas! – chove uma chuvinha fina a me lembrar que tenho de recolher a roupa do varal.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

MAIS Notícias
Capital Mundial do Livro
Capital Mundial do Livro

Como no verso de uma de suas mais aclamadas canções, o Rio de Janeiro continua lindo. Vimos à cidade, entre outras coisas, para assistir ao show "Tempo Rei", último da carreira de Gilberto Gil em palco. Enquanto esperamos o início do espetáculo, entre um e outro gole...

Simplesmente eu, Clarice Lispector
Simplesmente eu, Clarice Lispector

"A arte é o vazio que a gente entendeu", C.L.   RIO --- Em companhia do escritor Clauder Arcanjo e de sua gentilíssima Luzia, Liana e eu assistimos, no Teatro I Love Prio, nesta cidade, ao espetáculo "Simplesmente eu, Clarice Lispector". Plasmado em textos,...

Vida e beleza em meio aos mortos
Vida e beleza em meio aos mortos

Uma manhã de sol, em Paris, sou acordado bem cedo por um amigo brasileiro que chega à cidade pela primeira vez. Era espírita devotado, queria, antes de qualquer coisa, visitar o Cemitério Père Lachaise. Não me ocorreu que essa fosse uma prioridade no programa de...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *