O amor não é necessário

15/11/2024

Li, durante a semana, o recém-lançado (e recomendabilíssimo!) “Clarice Lispector, entrevistas”, publicado pela Rocco com organização de Claire Williams, da Universidade de Oxford. Sobre o livro escreverei em coluna das próximas semanas, mas o farei transversalmente em alusão a uma pergunta recorrente no conjunto de entrevistas realizadas em diferentes jornais e tevê pela autora de “Perto do coração selvagem”: “O que é o amor?”.

A pergunta me fez retornar a uma crônica publicada no livro “Do amor e outras crônicas”, de minha autoria, que tomo a liberdade de publicar neste espaço do eclético Segunda Opinião. Vamos ao texto.

Durante happy hour, amigos conversamos sobre cinema e um deles levanta a seguinte questão: “Que cena lhe é mais marcante sobre o amor?”. Cinéfilo inquieto cito uma cena de “Cinema Paradiso” me emociona muitíssimo todas as vezes que revejo o belo filme de Tornatore. Alguém cita a soberba cena do aeroporto no filme “Casablanca”: “… nós sempre teremos Paris”. Um outro nos desconcerta ao lembrar o encontro de Dean Stanton e Nastássja Kinski em “Paris Texas”. Uma amiga volta à comovente passagem do xaroposo “Love Story”, em que Ali McGraw diz para Ryan O`Neal: “Amar é ter jamais de pedir perdão!”. Discute-se o perdão, o que é o amor, na esteira do filme dirigido por Arthur Hiller.

Um tanto polemista, considero a fala de Ali McGraw uma ingênua e idealizada compreensão desse sentimento ao mesmo tempo tão simples e tão complexo. Acho que o amor vai mudando no ritmo das mudanças que os tempos nos impõem. O amor que não recebe e não dá o perdão, não é amor. É paixão, fogo de palha, emoção esférica, demasiada febril para ser considerada amor. É algo dionisíaco, é irmã da loucura, como quis Drummond. Mas, afinal, o que é o amor?

O amor é sentimento plano, apolíneo, coisa serena, com pés no chão e olhar para o infinito.

Por isso, na contramão do que está no clássico adolescente dos anos 70, amar é saber dar e pedir perdão. Se não há perdão e a necessidade de que ele exista, amor não é. É paixão, é desejo efêmero, é fogo que arde, ferida de que se cura na brisa mansa da antemanhã.

A Filosofia, desde que se a compreenda como uma interpretação racional da realidade, oferece-nos diferentes conceitos do amor e da paixão. Para Platão, por exemplo, o amor/paixão é uma enfermidade do coração. É o amor Eros, que é desejo, o que leva o amante a cometer desmandos, a querer a maravilha da quase posse do objeto amado: “Quero tê-lo perto, quero protegê-la, quero cuidá-la, pois que é coisa minha!”. Daí surge o ciúme delirante, que impede o amor de acontecer, esse “monstro dos olhos verdes” de que nos falou Shakespeare.

Volto ao que conversávamos à mesa do bar, e o debate enche-se de entusiasmo, acalora-se, afloram os exemplos, impõem-se as convicções mais enraizadas da subjetividade de cada um. Deslizamos para o campo da filosofia barata, e nos damos ao gratuito exercício das definições. O que é o perdão? “Perdoar é esquecer”, diz alguém, a que outro contesta. Agarra-se a Hannah Arendt: “O perdão não é sinônimo de esquecimento. O perdão é a lembrança”. Aplaudo, pois que não precisa do perdão aquilo de que somos capazes de esquecer. O perdão é algo indispensável para aquilo que, permanecendo vivo na memória, cicatriza pela força do amor, pelo saber compreender, pelo desejo da reconciliação. Do contrário, terá sido “beicinho”, jogo passional, um tipo de charme ardiloso e vulgar.

E vamos em frente, esses contendores do bom combate, a dar espaço às amenidades, ao anedotário da semana, muito mais propícios para a boa hora, quando os telefonemas das esposas já formalizam a irrecusável convocação.

Não sem antes, já sobre a mesa a “saideira”, recordar “Cenas de um casamento” e a antológica fala de Liv Ullmann: “… ninguém nunca me disse o que é o amor. E não tenho certeza se precisamos saber. Mas, se quiser uma descrição detalhada, vá à Bíblia. Lá, Paulo descreve o amor. Se Paulo estiver certo sobre o que é o amor, acho que ninguém o vivencia. Mas em discursos de casamento e outras situações sociais, funciona muito bem. Acho que basta ser gentil àqueles com quem vivemos. Afeto também é bom. Humor, amizade, tolerância. Ter expectativas sensatas. Tendo isso, o amor não é necessário.”

Antes de nos despedirmos, pode-se concluir, cito eu a cena inesquecível. Está em Ingmar Bergman.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

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