O cidadão comum – final

17/05/2025

Refletindo sobre a odes ao álcool encontrada no livro, José deixou-se devanear pelo tema. Pensou sobre a importância do torpor como um sanador das dores da alma e como suporte para o fardo de existir. O álcool como fuga para um mundo aprazível, ainda que momentaneamente. Vendo-se no estado em que se encontrava, doente, entendeu, por fim, a razão de beber tanto, mesmo não tendo atentado para isso antes, pois agia mecanicamente, de forma automática, subconsciente, provavelmente.

Viu-se, pela primeira vez na vida, talvez, como um homem comum. A realidade pareceu, por fim, descer sobre ele. A imagem crua que tinha de si era a de um homem viciado e limitado. Já não tinha família, amigos, saúde, vida social… Nada. Só o álcool consolador e necessário lhe fazia companhia. Mulheres? Há muito não nutria paixão por qualquer que fosse. Tornara-se um ser desprezível, mesquinho, individualista e solitário.

Entretanto, depois de muita reflexão, dias passados e muito álcool nas veias, passou a gostar um pouco de si e do limbo a qual a vida o colocara – mesmo sabendo que boa parte disso fora culpa sua. Viu-se como uma metamorfose de Kafka quando leu o seguinte trecho do livro há muito esquecido em meio aos outros tantos que possuía:

 ‘‘Como é que uma coisa assim pode acometer um homem? Ainda ontem à noite estava tudo bem comigo, meus pais sabem disso, ou melhor: já ontem à noite eu tive um pequeno prenúncio. Eles deviam ter notado isso em mim.’’

Era isso. José era o novo ‘‘inseto’’ que a vida, a desgraça e a depravação transformaram. Um homem forjado pelas desventuras do inevitável destino. Ser um cidadão comum, sem mérito, à margem, superficial era a sua punição. Não obteve sucesso em nada. Colecionou fracassos e infortúnios, dia após dia. Caia mais e mais. Era um vergonhoso esboço do que um dia vislumbrou ser. Era um qualquer.

E não, não haveria um final feliz para ele, como é comum em histórias de amor que em nada imitam a vida dura, crua e ríspida. A realidade faz com que recorramos às nossas ilusões, loucuras e vícios. José não era diferente. Encontrou conforto no ostracismo e na companhia dos livros e das muitas garrafas entornadas. Adaptou-se à rigidez do mundo, que lhe era indiferente, como o é a todos que neles se encontram vivos. Não há paz enquanto há vida.

Antes de partir, em uma noite qualquer de um dia qualquer, suas últimas lembranças foram a do acidente na mina, na sua filha ingrata, nos seus livros. Já seu último prazer, poderia ser visto em cima do criado da cama, que repousava ao seu lado depois de uma última tragada. Fim comum para um homem comum.

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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