O passado que assombra

01/06/2019

Leio, em e-book (a versão impressa será lançada hoje em São Paulo), Sobre o autoritarismo no Brasil, da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. De cara, o livro arrebata pelo tratamento de linguagem com que Schwarcz teceu a narrativa, emprestando ao texto uma leveza que lembra uma conversa informal, sem perder de vista, no entanto, o rigor acadêmico que é mesmo uma marca da pesquisadora e escritora extraordinária que é.

“Tentei mesmo fazer o livro em tom de conversa”, e pensar com o leitor o momento atual por que passa o País”, disse-me ela há pouco sobre o novo título, direto de São Paulo.

No momento em que se tenta por meios legais ou não desconstruir a inteligência brasileira a partir de um discurso egocêntrico e assumidamente reacionário em suas bases temáticas, o livro constitui uma contribuição importante para o debate e serve para reacender na memória a consciência muitas vezes apagada de que somos um País historicamente autoritário do ponto de vista político.

Dividido em 8 capítulos, Escravidão e racismo; Mandonismo; Patrimonialismo; Corrupção; Desigualdade social; Violência; Raça e Gênero e Intolerância, Sobre o autoritarismo brasileiro, Cia. Das Letras, 2019, já na longa introdução, intitulada História não é bula de remédio, explicita para o leitor sua estrutura textual composta de outros olhares de Lilia Schwarcz, muitos dos quais assentados em sua vitoriosa parceria com Heloísa Starling no incontornável Brasil: uma biografia (2014), da mesma editora, ao que se soma, como esclarece Lilia Schwarcz, em nota, uma série de artigos publicados no jornal Nexo ao longo dos cinco últimos anos.

Como a chamar a atenção do leitor para o que, ao lado do capítulo dedicado ao tema da corrupção, parece mesmo constituir o esteio da pesquisa, o livro debruça-se sobre a questão educacional com um desvelo que remete, necessariamente, à criminosa redução de recursos anunciada pelo Ministério da Educação: “Somente a educação tem a capacidade de desativar o gatilho da desigualdade social. Essa é uma aposta no futuro”, sentencia a autora com a firmeza de análise que assinala sua trajetória intelectual desde as salas de aula como professora da USP.

Mas o livro, produzido entre outubro de 2018 e 1º. de março passado, ainda que se volte com redobrada atenção para o que se pode identificar como as raízes do autoritarismo brasileiro, como o próprio título sugere, mostra-se atento aos dias sombrios de nossa realidade hoje, revelando a preocupação da intelectual engajada que é Lilia Schwarcz. Nesse sentido é que a autora ressalta o uso da comunicação digital em sua vocação dialética: Assim como favorece a massificação de um pensamento autoritário como se vê atualmente no Brasil e no mundo, diz ela, “não é o caso de demonizar essas redes, que têm uma veia democrática importante”.

Nessa perspectiva sintonizadora, e de forma mais clara, neste oportuno Sobre o autoritarismo brasileiro, em que pese um e outro comentário menos satisfeito com o que julgam ser uma omissão da historiadora não “dar nomes aos bois”, deve-se destacar Quando o fim é o começo: nossos fantasmas do presente, notável texto com que Lilia Schwarcz desfecha, com perfume literário, o seu belo livro.

“A história, ressalta, costuma ser definida como uma disciplina com grande capacidade de ‘lembrar’. Poucos se ‘lembram’, porém, do quanto ela é capaz de ‘esquecer'”.

Cita, com sutileza, Gilberto Freyre, no Plenário da Constituinte em 1946: “O passado nunca foi, o passado continua”, não sem nos advertir de que o sociólogo pernambucano fazia ali um elogio aos tempos de outrora, pontuando em grande estilo: “… esse passado que vira e mexe vem nos assombrar, não como mérito, e sim tal qual fantasma perdido, sem rumo certo”.

Um livro notável em hora oportuna.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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