O primeiro leitor, ensaio de memória

30/05/2025

“Que enorme contradição é escrever algo memorialístico, tendo uma proposta existencial que valoriza o silêncio e a reclusão”, Luiz Schwarcz.

 

No campo teórico torna-se difícil estabelecer diferenças rigorosas entre a autobiografia e o que se convencionou chamar de memórias. Mesmo o diário pessoal e as confissões, à maneira de Agostinho e Nelson Rodrigues, para ir de um extremo a outro, têm suscitado desencontros classificatórios.

O certo é que o gênero, cujas características suscitam uma boa dose de subjetivação, equilibrando-se entre as recordações do sujeito e o registro historiográfico propriamente dito, tem ocupado significativo espaço nos catálogos das mais prestigiadas editoras, constituindo uma porção nunca desprezível em meio às publicações e eventos da atualidade associados ao livro.

Costuma-se afirmar que a autobiografia se presta mais adequadamente ao relato objetivo e referencial de uma existência, não dando margem a que o autor perca de vista a realidade, o meio e o momento histórico narrados.

Já as memórias, ainda que guardem pertinência com os fatos relatados, enseja uma certa liberdade do autor na reestruturação desses fatos, transitando com relativo “à-vontade” sobre acontecimentos e lembranças o mais das vezes encobertos pela fumaça do tempo vivido.

As memórias trazem em si, porque natural, uma quase inevitável tendência para o que se convencionou classificar de texto literário, aquele em que os recursos formais da narrativa pesam quase tanto quanto o próprio conteúdo.

Numa e noutra, no entanto, é a existência do autor que se coloca no centro dos acontecimentos, não como uma atitude narcísica, mas como esteio para os fatos pregressos considerados dignos de se transmitir ao leitor.

Exemplo notável de memórias, tal qual as consideramos acima, é o belíssimo “O primeiro leitor, ensaio de memória” (Companhia das Letras, 2025), livro de Luiz Schwarcz que acaba de chegar às livrarias e já se consagrou como um clássico do memorialismo brasileiro contemporâneo.

O título, como o leitor mais atento pode constatar, e o próprio Schwarcz deixa claro na Introdução, dialoga “incidentalmente” com “O último leitor”, do escritor argentino Ricardo Piglia. Segundo Schwarcz, provocado por um amigo a revisitar o texto do escritor argentino (e seu amigo pessoal), veio-lhe à mente a comovente história de Che Guevara “lendo numa árvore, criando um intervalo na perseguição que sofria na Bolívia”.

Editor de sucesso, incontáveis vezes premiado no Brasil e em eventos de prestígio internacional, como a Feira de Livros de Frankfurt, a que dedica curiosas passagens do livro, Luiz Schwarcz transita do “ensaio de memória”, como decidiu rotular a obra, para o autobiográfico tradicional, com a mesma habilidade no tratamento de linguagem e  na construção do estilo, procedendo a escolhas de estratégias narrativas não raro surpreendentes.

Se é elegante no plano da expressão, todavia, é no plano do conteúdo que o livro seduz o leitor. As histórias envolvendo amigos, escritores e editores, são invariavelmente sedutoras, mesmo aquelas em que as situações vividas não foram as mais confortáveis. O rompimento da amizade com Rubem Fonseca, por exemplo, é narrado com elogiável transparência, sem jamais incorrer em gestos de mínima deselegância. Pelo contrário, Schwarcz revela-se exemplarmente honesto em relação a tudo o que existe de mais relevante em sua trajetória, desde o início de sua carreira, sob as bênçãos de Caio Graco Prado, a quem se diz em dívida impagável pelos bons ensinamentos e desinteressada amizade, até se tornar a figura central do mercado livreiro no Brasil.

Nesse sentido, aliás, é que “O primeiro leitor, ensaio de memória” representa uma contribuição importante para a história da produção, confecção e comercialização do livro no país. Ao lado de ser delicioso como matéria de leitura.

A pretexto de contar sua vida como editor, portanto, o que faz exemplarmente bem, Luiz Schwarcz presta uma bela homenagem a pessoas com as quais convive ou conviveu, dos mais simples funcionários da Companhia das Letras, a quem se dirige com humildade por muitas vezes não ter dispensado a devida atenção e reconhecimento, à gente graúda do mundo intelectual, nomes como José Paulo Paes, Paulo Francis, Susan Sontag, José Saramago, Jô Soares e Jorge Zahar. Vai além, deita reflexões sobre literatura e leitura, sobre a dolorosa experiência de rejeitar livros de autores conhecidos e, não raro, amigos. Revela como se dá o processo de criação, seleção e publicação de livros. E a paixão nascida da leitura de um conto de Lima Barreto durante uma aula, ainda menino.

Essas e outras razões por que “O primeiro leitor, ensaio de memória” é livro incontornável em matéria de memorialismo pessoal e livresco.

Para ler e reler, diga-se em tempo.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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