Considero uma tolice e pública manifestação de despreparo intelectual os juízos emitidos na rede acerca da eleição da jornalista Míriam Leitão para a cadeira de Castro Alves, 7, da Academia Brasileira de Letras, nessa quarta-feira 30. Fico a indagar: Até quando a questão ideológica vai interferir nas nossas tomadas de posição sobre todas as coisas no Brasil?
Míriam Leitão tem uma trajetória notável, como jornalista e como escritora, mesmo de ficção, terreno em que já deu provas de inegável talento. É ler “Tempos extremos”, sua estreia como romancista, para reconhecer suas qualidades no campo da prosa de ficção, livro em que transita com originalidade e perfeito domínio da linguagem dita literária. Nele a autora estabelece impensáveis relações entre momentos históricos dramáticos de nossa História, a exemplo da escravidão e da ditadura militar, e o faz pelo olhar sensível de quem pensa o país com aguda capacidade de análise.
Mas isso, por si só, dirão, ainda não é literatura. É certo dizer, desde que não se tenha olhos para enxergar para além do plano do conteúdo, pois que a estruturação da narrativa e o estilo da escrita estão a revelar uma escritora em plena consciência do seu ofício, por mais que ainda exista, sob este aspecto, um caminho a ser percorrido.
Ao 72 anos, a mineira de Caratinga, e agora imortal da ABL, possui um currículo digno de respeito. Escreveu para alguns dos jornais mais importantes do país (Gazeta Mercantil e Jornal do Brasil, entre eles), antes de integrar o alto jornalismo do Grupo Globo, empresa em que se tem notabilizado como uma das vozes mais respeitadas pelo feeling político que a faz, o mais das vezes, incomodar sequazes de diferentes linhas do espectro político.
Se mal compreendido ou não, este aspecto conta a seu favor. Trata-se de uma profissional coerente, em que pese o seu jeito aparentemente inseguro de expressar sua fina compreensão dos fatos.
De direita ou esquerda, o rótulo já não se aplica a quem pauta o seu discurso pela capacidade de entender que os tempos são outros — e que cumpre ao comentarista de tevê ou jornal impresso, indiferentemente, interpretar o país à luz da “possível” neutralidade.
Como ocorreu a tantos e tantos intelectuais brasileiros, escritores, artistas ou simples militantes, Míriam Leitão foi presa e impiedosamente torturada durante a ditadura militar. Sob este aspecto, não é gratuito lembrar, esteve condenada, durante dias, a dolorosa permanência em uma solitária nos porões de um quartel militar no Rio de Janeiro. Minto: completamente nua, Míriam tinha como companhia uma jiboia, cujos olhos ameaçadores deitavam luz em meio à total escuridão.
Duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira, e do Troféu Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores, em 2024, como intelectual do ano, Míriam Leitão foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura pelo romance “Tempos extremos”, há pouco referido nesta coluna.
Escreveu ainda livros infantojuvenis, destacando-se como uma de nossas principais escritoras no gênero.
Em tempos sombrios, com ameaças constantes à democracia e ao Estado democrático de Direito, polarizações nocivas para o futuro do país e visão estreita do processo histórico em curso, deve-se ver como positiva a eleição de uma intelectual como Míriam Leitão para a Casa de Machado de Assis.
Que as críticas que lhe têm sido destinadas, mal divulgada sua eleição, traduzam o fundamentalismo ressentido de segmentos de nossa sociedade, além de notória ignorância na matéria, é em alguma medida compreensível, mas silenciar diante delas é coisa a que não me disponho, indiferentemente a beicinhos e julgamentos que me façam de um e de outro lado.
Tudo isso, claro, até que Caetano Veloso, poeta e fino intérprete do caráter nacional e da cultura brasileira, conhecido cantor e compositor popular, autor de livro fundamental sobre o Brasil (refiro-me a “Verdade Tropical”), aceite sentar-se a uma cadeira do Petit Trianon.
É minha torcida.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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