Pratos quebrados

25/02/2023

— Confessa que você ainda a ama, seu cretino miserável!

— Calma, amor, eu posso ao menos contar como tudo aconteceu? Garanto que, ao final, você me dará certa razão!

E a gritaria continuava. É o tipo de discussão de vizinho, que não há como não ouvir. Meu violão ficou inaudível ante aquela gritaria. Resolvi pô-lo em descanso até que a tempestade de xingamentos passasse. Abri uma cerveja, acendi um cigarro e, à medida que as ofensas do casalzinho do quarto contíguo foram se tornando mais amenas, fui tomando meus tragos e relembrando de quando eles mudaram para cá.

A mulher, uma ‘coroa enxuta’ surpreendentemente apetecível, de coxas grossas e bem torneada (dessas que encontramos nas tais academias), cabelos negros, olhos castanhos e bumbum empinado, humilharia qualquer jovenzinha esquálida que se pensa a última bolacha do pacote. Já o seu marido, um careca robusto e idiota nas concepções inflexíveis, vivia a beber cerveja, comer petiscos e distribuir cantadas – dessas dignas da década de 1980 – vergonhosas às moçoilas que por ali transitavam. Era o típico vagabundo boêmio.

Já reparastes, caro leitor, que os casais em geral dividem mundos completamente antagônicos? Que o que os une – o amor, dizem – parece ser o suficiente para levarem vidas conflitantes até que a morte os separe? Suportam traições, frieza de ambos, indiferença… mas o amor, esse matreiro elo, os une ao cotidiano insosso, dia após dia, mesmo na perca da qualidade sexual. O amor parece sustentar a relação de um modo prejudicial sobremaneira.

— Aquela piranha já foi sua mulher, esqueceu, babaca!

— Já foi! Não é mais, meu amor! Agora solte esse prato!

CRASH!!!

— Você quebrou, ao jogar o prato, a nossa moldura de casamento, sua louca desvairada!

— Eu queria quebrar era essa sua careca, maldito! Toma essa!

CRASH!!!

Ah, o amor em todas as suas formas de manifestações. Já li que até as formas de ódio, são também formas de amor. Se isso for verossímil, a vizinha apetecível está se declarando em forma de ira nesse exato momento. Soube que foram expulsos do apartamento antigo justamente por conta de que os vizinhos já não suportavam mais contendas dessa natureza.

Ouve então, finalmente, silêncio brusco. Repentinamente brusco! Por fim, paz. Peguei novamente o meu surrado violão. Ia voltar a tocá-lo horrivelmente. Ao tocar o primeiro dó, percebi que soou estranho. Deve estar desafinado. Mais uma dedilhada… Continua desaf… Peraí… São gemidos, não a nota dó que eu tentava executar! O som vinha do apartamento vizinho… Os dois danados fizeram a gostosa paz acompanhada de sussurros e, claro, da cópula mais agradável de todas: a da reconciliação. Espero que tenha sobrado pratos para um jantar romântico.

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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