Pré-história

17/05/2025

Eu costumava gostar mais do Centro – sobretudo nos dias de sábado. O torvelinho de gente: vozes vibrantes, risadas, pernas; pernas urbanas, pernas rurais; roliças pernas, torneadas, compridas… a cidade em ebulição. Mas as cidades não mudam: apenas perdem a alma. Porém divago.

Eu queria falar de Solange, afinal de contas. A primeira vez que ela apareceu por aqui eu estava atrás do balcão cortando carne, com a testa suada. Eu trabalho em plena pré-história, caros leitores.

Daquele ângulo, julguei que ela era mais alta que a média (devia ter 1,70m). Ah! Só os iniciados conhecem os insondáveis mistérios da mulher alta…suas sutilezas… mas deixemos isso para depois.

Solange. Universitária, não imaginava que eu, sim, já tinha um diploma, ainda mais um de psicologia. Mas isso ela só poderia saber mais tarde

No início nosso trato foi simples, madeira de lei: eu bancaria o aluguel (ela era das adjacências) e os suprimentos indispensáveis para forjar a minha ” boneca de ferro” e, em troca, poderia visitar seu apartamento duas ou três vezes por semana. Preto no branco.

E tudo ia bem até ela querer fugir da “mesmice” e visitar o meu pequeno sobrado. Daí a descoberta chocante de que, na pré-história de minha vida, havia civilização. “Uau, caraca! Quantos livros!” Seus negros olhos ficaram ainda mais reluzentes.

Chamou -lhe muito a atenção um livro que estava à frente dos demais, ereto. Nele havia estampado uma mulher trajada de preto, num vestido sedoso. Ao lado da dama, uma cadeira antiga e sobre ela uma mala de caixeiro-viajante, do início do século passado.

– Seu safado! Aposto que nunca abriu esse livro. Só está aí porque você tem tara em mulher alta!

De certa forma ela estava certa. A capa me fascinava tanto que tinha receio de começar a ler e me deparar com mais uma história fiukiana.

“O que você acha que ela está fazendo? Tem duas possibilidades: ou ela está lendo uma carta triste, algo do tipo, ou… está pronta!  na posição que você tanto gosta, seu tarado!

Pobre Solange! Apesar da pose ser de fato sugestiva: a mulher agachando-se, lançando um meio olhar para trás, revelando um corpo escultural… não era bem isso que me fascinava.

A luz incidindo sobre seu rosto alvo e fino, seus cabelos negros, mais negros que os de Solange; àquela altura tão incomum que permitia que ela alcançasse objetos distantes; sua envergadura privilegiada, que fazia com que ela se apoiasse onde bem entendesse… ainda não era isso.

“E o que é, então? O que você vê de tão fascinante nela?”

Ah, Solange! Não deixemos que isso comprometa o que temos!

Talvez eu não apenas veja o que está na foto de capa. Quem sabe eu não pressinto que existe uma voz que permeia a imagem? Talvez a mesma voz, com o mesmo tom, na mesma inflexão que uso agora, ao falar com você.

“E o que acha que a voz diz?”

A mesma coisa que eu sempre digo, meu bem:

“Está pronta?”

 

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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