Prólogo, ato, epílogo

28/09/2019

Na mesma semana em que foi tratada como “aquela mulher sórdida” pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub, num dos episódios mais abomináveis de que se tem notícia em toda a história da pasta, a deusa do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, lança Prólogo, ato, epílogo (Companhia das Letras, 392 págs.), autobiografia produzida com a colaboração de Marta Góes.

O livro assinala as comemorações pelos 70 anos de carreira da mais notável atriz brasileira desde que morreu Cacilda Becker, nome de maior prestígio até o final dos anos 60.

Fernanda Montenegro, da altura dos seus irretocáveis 90 anos, contados com exatidão no próximo dia 16, conta no livro a sua trajetória desde a infância, no Rio de Janeiro, onde nasceu no bairro de Campinho, entre Jacarepaguá, Cascadura e Madureira, até tornar-se a nossa mais “respeitada” atriz do rádio, do teatro e do cinema. Comenta seus trabalhos de maior repercussão nos palcos, peças que marcaram a história do teatro nacional, com destaque para as memoráveis montagens de A Moratória (1955), O Beijo no Asfalto (1961), Fedra (1986); no cinema, A Falecida (1965), Eles não Usam Black-tie (1981), Central do Brasil (1998) e na televisão, A Morta sem Espelho (1963), Guerra dos Sexos (1983) e O Outro Lado do Paraíso (2017).

Mas ler as memórias de Fernanda Montenegro (li-as em ebook), é muito mais que revisitar a grande agenda do teatro e do cinema brasileiros, mesmo quando a atriz verticaliza seus comentários cobertos de lucidez sobre a arte no país e seu entorno, na linha do que faz referindo-se às desastrosas ações do governo de Fernando Collor, como fechar o Ministério da Cultura, ou quando se refere à campanha das Diretas Já, de que participou desde o primeiro evento no dia 12 de janeiro de 1984 , em Curitiba. É também se deleitar com a leveza de seu depoimento e a forma não menos delicada de recordar passagens emocionantes de sua vida, na perspectiva do que faz sobre a primeira viagem à Europa, em 1974, com o marido, Fernando Torres, e os filhos: “Voamos até Cagliari e lá tomamos um ônibus para Oristano, a cidade mais próxima da aldeia dos meus sardos. […] A metade da casa de pedra em que meus avós viveram ainda estava lá”. A essa altura de suas recordações, reporta-se a outras viagens, como a de 2010, para receber homenagens de autoridades em Bonarcado, Roma e Milão.

Sobre o ofício de atriz, dá um depoimento um tanto amargo: “Troquei de pele durante 70 anos. Nunca tive meu próprio rosto nem postura”. E arremata, citando Cecília Meirelles: “Em que espelho ficou perdida minha face?”. Vai além, relembra os amigos, os atores e atrizes que lhe serviram de modelo, gente como Grande Otelo, Bibi Ferreira e a francesa Henriette Morineau, de quem ressalta a “disciplina absoluta”. Para terminar com a declaração que nós, seus admiradores confessos, jamais queríamos ouvir: “Tudo vai se harmonizando para a despedida inevitável. Mas acordo e canto”.

Em sua visita recente a Fortaleza, homenageada durante a solenidade de abertura do Cine Ceará 2019, Fernanda Montenegro repreendeu com elegância as atrizes de A Vida invisível, filme de Karin Aïnouz, que, desatentas, deixavam o palco do José de Alencar sem o rito do agradecimento à plateia: “Psiu, voltem!” tonitruou Fernanda, “Um elenco não deixa um palco assim!”

E dando-lhes as mãos, curvou-se no proscênio com a dignidade de sempre, enquanto duas lágrimas, confesso,​ rolaram-me pela face serenamente.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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