“Aqui, na altura dos olhos, sondando as profundezas da alma humana, deparo com Dostoiévski — e outros russos, por óbvio: Gorki, Púchkin, Turguêniev, Gógol, Tchekov, Maiakovski; um pouco abaixo, titubeando entre o ser e o não ser, repousa Shakespeare; ali, um tanto amarrotado, vê-nos, sarcástico e impostor, Machado de Assis; acolá, entre pessimista e desmistificador, está Franz Kafka, contorcendo-se em metamorfoses. Na solidez do seu silêncio, velho detentor da razão, repara-nos, de soslaio, Immanuel Kant, indiferente às luzes que emanam de Voltaire, Montesquieu, Rousseau – tão próximos dele, quase ao lado. E aquele barbado alemão, assertivo, que renasce das cinzas em sua genialidade?” (Alder Teixeira, em Conversa de Leitor: De códices e livros, de livrarias e livreiros, de Paulo Elpídio de Menezes Neto, 2023).
Vira e mexe, indagam-me, curiosos de como me fiz leitor: “Como você adquiriu o hábito de ler?” Num país em que são desanimadores os números que quantificam aqueles que leem com frequência, realidade que vem se agravando com a massificação das novas tecnologias, falar do hábito da leitura é quase uma missão para os que ainda amam os livros e creem, utópicos e confiantes, que se pode “vencer o inimigo invencível”.
Autor de obra importante sobre a matéria, “A Geração Ansiosa”, best-seller incontrastável, o estudioso americano Jonathan Haidt expõe com desencanto que o problema não é só das crianças e adolescentes. Também os adultos, ressalta, sofrem o impacto das novas tecnologias, e se embrutecem: “É bem possível que toda a humanidade esteja ficando mais estúpida desde 2015, que é o momento exato em que nossas máquinas passaram a ficar mais inteligentes, afirmou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, edição dessa quarta-feira 21. “É preciso agir agora”, disse, entre realista e sonhador.
Volto ao início de nossa conversa. E revelo, em parte, como me descobri um leitor compulsivo, amigo dos livros, dos filmes, das artes.
Tenho comigo as palavras do professor Marcos Agra, quando estudava o pré-universitário em Campina Grande: – “Leia tudo. Dos clássicos aos cordelistas, mas escolha bem as suas leituras.”
Àquela altura, para um filho de uma cidade pouco afeita à literatura, já era considerável o que havia lido. Gostava dos regionalistas de 30, sobremaneira Jorge Amado, Graciliano Ramos e Érico Verissimo. Deste último, com a idade de 16, 17 anos, traçara os cinco volumes da trilogia O Tempo e o Vento, além do ‘pequeno príncipe’ brasileiro Olhai os Lírios do Campo e o excepcional Incidente em Antares, que considero o seu melhor romance. Um pouco de Alencar e Machado de Assis, é verdade. Este viria a ser a minha cachaça algum tempo depois.
Além deles, já conhecia um pouco da literatura portuguesa, Eça de Queirós à frente, de quem leria O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, A Ilustre Casa de Ramires e Os Maias.
Entre os poetas, com frequência, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Vinicius de Morais. Era capaz de dizer de cor muitos dos seus poemas, o que despertaria em mim o interesse pelo teatro, que faria a partir da época de Campina Grande.
Em 1975, seria premiado como o ator revelação do ano, pela interpretação de um dos papeis centrais da peça O Palácio das Ilusões de Uma Negra, escrita a quatro mãos por Adrianne Kennedy e John Lennon, sobre a qual, não faz tempo, discorri neste mesmo espaço.
Mas foi o professor Agra quem me apresentou autores mais profundos, emprestando-me os primeiros Kafka, Wilde, Proust e um ou outro russo. Daí nasceria, também, o meu entusiasmo pela literatura francesa, sobretudo, com a descoberta de Flaubert, Zola, Balzac, Stendhal e os malditos Baudelaire, Rimbaud e Paul Verlaine.
Depois viriam Dostoiévski, Tólstoi, Górki e Tchékhov. Deste, em especial os textos teatrais me impressionavam. Ao ler as peças As Três Irmãs, A Gaivota e Tio Vânia, adquiri o hábito de ler os textos para teatro como produções literárias, uma vez que só muito raramente teria a oportunidade de vê-las montadas no palco. Veio o tempo, e me permitiu correr mundos e perigos, devorando os clássicos, da tragédia grega aos contemporâneos: Sófocles, Ésquilo, Eurípedes, incontornáveis. E Shakespeare, Pirandello, Brecht…
Mais tarde descobriria Nelson Rodrigues, o grande gênio do teatro brasileiro e um dos nossos melhores cronistas. Ainda hoje, sempre que posso, releio Nelson, mais que isso, estudo Nelson Rodrigues, muito antes de seu teatro e suas crônicas caírem no gosto do grande público, há coisa de uns 30 ou 40 anos.
Tenho medo, leitor, que soe arrogante declinar tantos nomes de autores e obras nestas minhas memórias. Mas, ainda que correndo o risco de ser mal-entendido, vou em frente. Quero que esta coluna, bem na linha do que tem feito, suscite algum interesse pela grande literatura. É meu ofício de professor fazer despertar a curiosidade pelos bons livros, contaminar aqueles que não foram contaminados ainda com o micróbio desta doença maravilhosa que é a paixão pela arte. Se a vida, por algum golpe de sorte, que não sei bem explicar ou entender, fez-me assim, vejo nisso um tipo de milagre e quero partilhar com você as suas benesses. As boas coisas devem ser compartilhadas. Permitam-me fazê-lo, que é boa a intenção.
P.S. Enquanto escrevo a coluna, vem de Paulo Elpídio de Menezes Neto o anúncio de um “mimo”, que os bibliófilos gostamos de presentear: “Oeuvres”, de George Steiner, em bela edição em francês da Quarto Gallimard.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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