1869: a situação de terror na Villa da Telha e arredores

24/02/2024

 

A então Villa da Telha, hoje cidade de Iguatu, viveu um verdadeiro “estado de anarchia” durante alguns dias do mês de março de 1869. O motivo? O rapto de D. Jacintha, a sobrinha do Barão do Crato, por um seminarista conhecido pelo nome de padre Nequinho. Logo após a fuga, raptor e raptada permaneceram seis dias escondidos na mata, distante uma légua da Villa da Telha e depois foram buscar refúgio na casa de uma tia do raptor, que era casada com o alferes Justino Pinto de Queiroz, pessoa de prestígio na Villa da Telha.

O rapto de mulheres remonta ao Período Colonial e consistia no ato de tomar posse, capturar, a mulher e seu dote. Nessa relação de poder, estava em disputa o corpo feminino, que era raptado antes de mais nada das forças paternas, tutoriais ou do marido. Mas o rapto podia ser também consentido pela mulher e se tratar ainda de uma possibilidade de resistência diante das regras morais impostas pelas famílias.

Apesar de o motivo inicial ter sido o rapto de D. Jacintha, a matéria que trago para análise hoje pouco ou quase nada fala a respeito dela, dedicando-se mais no relato dos eventos de perseguição, assalto e ameaças entre coronéis, capitães, tenentes e “alguns criminosos vindos do Pereira”. A mando do tenente-coronel João de Hollanda, acompanhado pelo capitão Luiz José Esteves, Manoel Felippe da Silva, o capitão João Alves da Costa, Manoel Coleira e um “número superior a cincoenta homens”/ capangas armados, eles entraram na Villa da Telha à procura do raptor “com a mais cynica e imoral ostentação de força”. No caminho para a referida Villa, cometeram diversos atos criminosos, conforme se observa na matéria intitulada “O estado anarchico da Telha”, do jornal Pedro II, de 24 de março de 1869, edição nº 64:

“O tenente Manoel Francisco Ribeiro Júnior, tio do raptor sendo encontrado de caminho para esta cidade foi assaltado pelo coronel Luiz Paulino que deu a voz de prisão como commandante superior, abusando assim da autoridade, que indignamente ainda exerce para fins particulares em proveito proprio, o capitão Luiz Esteves põe-lhe nos peitos um rewolver e ameaça matal-o se não obedecesse a ordem de prisão, umm outro capanga arremeça-se sobre elle e arrebata-lhe do quarto uma faca que trazia, de sorte que o tenente Manoel Francisco teria sido victima dos sicarios do Sr. Luiz Paulino, e d’elle proprio se não fosse a intervenção do Sr. Ignacio Pereira, que adiantando-se obstou ao assassinato, sendo todavia o tenente Manoel Francisco conduzido debaixo de prisão para a villa da Telha.

Um outro individuo portador de cartas, sendo encontrado pelos mesmos sicarios foi obrigado pelas pontas das facas de que sahiu ferido em differentes partes do corpo, a fazer entrega da carta que levava, a qual foi hai mesmo aberta, violando-se assim o segredo das cartas garantido por nossas leis, e cuja violação é punida pelo nosso codigo criminal; […]

O alfares Christovão, completamente estranho a questão do rapto de D. Jacintha, vindo da Telha é na passagem de um riacho assaltado por um grupo de homens armados que gritam – é este o homem – o pobre moço que conduzia consigo trezentos mil réis alheios foge pelo matto espavorido sendo tenazmente perseguido por essa orda de assassinos!

Muitos outros viajores teem sido accommettidos por taes sicarios de ordinario embriagados, sendo-lhes tomado e investigados todos os papeis.”

Chegando à Villa da Telha, o coronel Luiz Paulino e seus comparsas cercaram a casa do alferes Justino Pinto de Queiroz com o intuito de “obrigal-o a fazer entrega da moça, dizendo que tem ordem de recrutar o moço”. Como um embate entre a polícia e as forças do coronel Luiz Paulino era bastante desproporcional, “mesmo porque seria travar uma luta horrível contra cincoenta ou sessenta desordeiros”, o que restou ao Sr. Justino foi pedir proteção ao chefe de polícia, mediante ofício:

 

“Illm. Sr. Dr. chefe de polícia. – O alferes Justino Pinto de Queiroz, cidadão brasileiro, casado e morador na villa da Telha d’esta provincia, vem muito respeitosamente implorar de V.S. a paz e tranquilidade de sua familia e propriedade, que se acha assás ameaçada, por uma extraordinaria força de capangas e sicarios do coronel Luiz Paulino Cavalcante de Albuquerque, com o fim de a força obterem do deposito em que se acha em casa do supplicante  a Exmª. Srª. D. Jacintha Augusta Ramos, que foi para casamento raptada pelo Sr. Manoel Francisco Ribeiro de Mello, acontecendo que tendo o raptor requerido o deposito judicial e sendo ordenado pelo juiz de orphãos, e tendo o escrivão respectivo tentado executar o mandado não foi possivel por ser obstado pela referida força, muito embora com prejuizo dos direitos pessoaes, e com infração do artigo 116 do codigo criminal. Ora, a vista do exposto requer o supplicante a V.S., se digne mandar que se faculte aos noivos os recursos legaes, que não se pretira o deposito em qualquer casa, tanto que seja [?] e honesta, fazer cessar a intervenção da polícia no caso vigente, uma vez que se acha o raptor com côr honesta e legal, a fim de que não se dê qualquer desacato, não obstante o supplicante detestar, e finalmente arredar a ordem de captura do moço,  logo que se acha em letigio a causa em questão, para que não seja tolhido o seu direito. N’estes termos o supplicante pede a V.S. se digne restituir sua tranquilidade, deferindo a presente, e que finalmente conceda-lhe publicar a presente; do que -R. M.-Telha, 12  de março de 1869. – Justino Pinto de Queiroz”

A matéria anuncia ainda que diversos desses homens armados são ladrões de gado na região ou já cometeram assassinatos, sendo, portanto, “verdadeiros reos de policia e criminosos”. O clima de tensão que se instalou foi tamanho, pelo que parece, ao ponto do advogado, Dr. Fructuoso, recusar defender o raptor por medo de ser assassinado “pellos desordeiros que tomaram de assalto aquela villa, e n’ella se mantém pela força, pelos ultrages, pelos insultos e pelas ameaças”. Um segundo advogado, o Dr. Laureno, que seguia com sua esposa para a Villa da Telha, foi coagido e ameaçado pelos capangas do coronel Luiz Paulino.

O presente documento em análise hoje traz alguns pontos interessantes para reflexão: 1) a posição de cargos de autoridade, como capitão e tenente, à serviço de interesses pessoais e acolhendo forças criminosas como um verdadeiro choque de interesses; 2) o conflito entre as autoridades policiais que restaram coagidas e os coronéis com seus capangas agindo em prol de seus interesses e independente da lei; 3) o rapto, não se sabe se consentido ou não, reverbera vozes masculinas em seus atos violentos, sem que haja preocupação sobre as ações de D. Jacintha; 4) o depósito judicial, o qual pede que se faculte os recursos legais, trata-se do dote, estabelecido no Código Penal de 1830 e ainda em vigor; 5) ainda, a marca de uma sociedade escravocrata se manifesta no trecho “uma vez que se acha o raptor com côr honesta e legal”.

 

 

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