A Capela de São Caetano

16/09/2023

E anjos disseram: não mais acordas, / Lírio nascido nas escarpas”

Alphonsus de Guimaraens

 

Recuperar a saúde, acalmar-me. Recomendou-me o médico que escrevesse um relato para assim separar o que ele chama percepções ilusórias daquilo que corresponde aos fatos da realidade. Então eis tudo como ocorreu, desde o princípio.

Era a festa de São Caetano, padroeiro do distrito do mesmo nome. Ocorreu há dois meses. Um povoamento pequeno, poucas ruas, uma praça, uma capela que é, e sempre foi, o centro da localidade. No passado, uma vila de agricultores. Antiga, tal qual a capela, datada de 1768, da época colonial.

Sou um homem comum, de meia idade. Tenho trabalho seguro, uma esposa, dois filhos. Moro na Capital. Mas tenho fortes raízes na terra de São Caetano. Avós, bisavós, um passado antigo. Venho todos os anos ver a festa. Minha família não vem comigo. Não apreciam a tranquilidade, que chamam de tédio. Eu venho. Encontro amigos, bebo um pouco, divirto-me. Foi assim por muitos anos. Mas naquele ano, o ano passado, foi muito diferente. Estranhamente diferente.

Era a noite final da festa religiosa. O costumeiro leilão de prendas para a Igreja e os necessitados. Luzes, bandeirinhas, fogos, barracas de comidas, tudo como de costume. Ah, como eu amo tudo isso. Todo o movimento em frente à velha capela.

Recordo que havia em mim uma estranha euforia. Um sentimento de alegria natural, como se estivesse vendo tudo pela primeira vez. Iria embora para a minha vida rotineira na capital no dia seguinte e esta lembrança não me deixava feliz. Ao contrário, pesava-me na alma.

Foi a partir daquele momento, por volta das oito horas da noite, que o estranhamento tomou conta de tudo. Eu olhava a brincadeira de umas crianças em torno da Capela. Corriam e faziam barulho. Uma delas tinha os olhos vendados e tentava apanhar as outras. Eu via tudo e me divertia. Quien con ninõ se acuesta amanece mojado. É engraçado, mas verdadeiro o provérbio. A certa altura, não sei bem porquê, quis ser eu o vendado e tentar apanhar as crianças. Brincar também. Assim fiz, mas desviei-me sem querer do grupo e creio ter dado a volta pelos fundos da Capela. Digo isto porque lembro que o ruído desapareceu por uns instantes. Eu andei e tateei por um ou dois minutos…

Depois, cansado da brincadeira e com medo de sofrer um tombo em meio às pedras, retirei a venda. Então Aquilo aconteceu! Por Deus, eu sei que aconteceu deveras!!!

Eu estava no mesmo lugar, em meio a uma festa do padroeiro São Caetano, mas há pelo menos trezentos anos atrás!!! Percebi imediatamente isto ao notar as roupas das pessoas, os jeitos, as falas e, é claro, como estava nova e muito bem pintada a Capela. As negras e pesadas portas, ao meu tempo envelhecidas, agora estavam reluzentes. O mais bizarro é que eu não era estrangeiro àquele lugar e àquela época. Tinha as vestes do tempo deles e ninguém me notava como algo insólito. Eu estava ali, por Deus que estava, numa festa do bom São Caetano ao tempo do Brasil Colonial.

Tudo me era familiar e aconchegante. Havia paz e alegria em meu Ser. Não me incomodava em nada aquela experiência absurda para a razão. Eu agia naturalmente. Falava com as pessoas como se de fato as conhecesse e fosse um deles. No entanto, incrivelmente, sabia o que tinha inexplicavelmente ocorrido. Mas, coisa curiosíssima, não queria pensar nisso. Minha vida no futuro era como uma lembrança que eu queria apagar. Em suma, eu estava feliz ali. Eu desejava ficar.

Não é verdade que o passado é preto e branco. Tudo reluzia fortemente à minha volta com cores intensas e uma espécie de vitalidade e juventude que eu nunca vira. Então eu concluí: eu viveria ali, entre aquelas pessoas, todo o resto da minha vida. Só precisava apagar as minhas lembranças. Não seria difícil.

– Venha, venha logo. Vamos ouvir a bênção e ver os fogos!

Aquela voz, aquelas palavras, como o mais puro bálsamo, chegaram aos meus ouvidos ao mesmo tempo em que uma fina mão segurou a minha. Era uma pequena jovem, dezoito, dezenove anos talvez. Eu a conhecia! Não sei como, mas sabia quem era. Vinha de algo muito pleno em mim; algo esquecido e bom. Eu a esperava sem saber que esperava. Coisas estranhas, muito estranhas!

Ela era morena, de um tom claro. Da cor da terra ao fim do dia quando recebe os últimos raios do sol. Os olhos muito negros, curiosos, mas um pouco tristes. Usava um vestido simples, branco, com fitas azuis e tranças nos longos cabelos. Chamava-se Maria. Não sei explicar também como eu sabia o seu nome. Apenas sabia.

Ela pareceu surpresa quando me chamou. Olhou-me demoradamente, sem entender porque eu olhava tudo, paralisado, como se tivesse acabado de nascer. Eu sorri, meio constrangido, e ela outra vez falou:

– Venha.

Contritos e piedosos assistimos à bênção do sacerdote. Mais uma festa de São Caetano se encerrava. Ainda posso sentir o contato da mão de Maria a segurar a minha. Sinto, ou lembro, seu perfume de uma fragrância muito simples, natural e nunca antes sentida. Ela respirava ofegante ao meu lado quando os fogos iluminaram os céus de uma noite escura e estrelada. Fogos de variadas cores e formas, muitos, a ponto de ofuscarem a visão. Foi então que tudo se perdeu. Meus olhos ficaram cansados de tanto brilho e eu os fechei por uns segundos apenas. Apenas segundos….

Quando os abri já era dia e eu estava só, sentado no degrau da Capela, sozinho e sem sentido nenhum do que ocorrera!!! Invadiu-me, e ainda a tenho, uma pesada sensação de Exílio, de Orfandade, de Perda.

Tentei depois refazer todo o ritual e fui objeto de riso dos amigos. Fui a Igrejas, Clínicas de toda espécie, conselheiros vários….

Procuro ainda explicação. Ou melhor, consolo para o que vivi e depois perdi. Tudo o que eu queria era voltar….

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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