Ato-falho

05/11/2022

Houve um tempo em que eu lia muito. Se me perguntassem como passei a gostar de ler, não saberia explicar. É como a nossa primeira língua: não nos lembramos como aprendemos a falar as primeiras palavras e nem como aprendemos a escrevê-las.

Tudo que me chegava às mãos eu lia com vivo interesse. Mas à medida em que o tempo passava mais certeza eu tinha de que não havia sentido para eu estar aqui. Nenhum dos autores conseguia me convencer do contrário.

O que eu sentia? Eu sentia que havia sido poupado, sim, esta é a palavra perfeita – “poupado” pela vida. Sentia que me criaram numa redoma e que eu jamais conseguiria enfrentar o mundo.

Imaginava isto: eu sendo catapultado para uma época primitiva (às vezes a idade média bastava) e tendo de encarar à vida de frente. Tenho certeza: seria liquidado em segundos. Eu sabia que não teria “casca” para aguentar alguns minutos ante uma tribo desconhecida, falando uma língua desconhecida e com costumes diferentes dos meus. Seria devorado, porque não havia “casca” em mim – eu era oco.

Então certa vez li que um escritor costumava ficar bêbado e caído na sarjeta, esperando, em vão, que um carro o atropelasse. Tentei esse método.

Como não era dado à bebida, calçava meu tênis, vestia-me de preto e saía no crepúsculo esperando que a displicência de algum motorista colocasse um fim àquilo. Torcia para que algum deles estivesse num dia ruim, sei lá, houvesse pego uma mensagem suspeita no celular da mulher, ou mesmo houvesse perdido o emprego, chegado à falência etc. Eu fazia o bêbado e equilibrista. Era xingado pelos motoristas, que raspavam, mas não me devoravam. Tentei com a bicicleta e deu no mesmo.

Quando fiz trinta anos decidi dar um basta. Li noutro autor que ele escondia cordas e armas, para não dar cabo da própria vida. Achei ridícula a ideia: chegamos a este mundo por um acidente e, se queremos sair dele antes do tempo, tem de ser assim. Não foi minha escolha nascer, nem caberia a mim dar cabo da vida usando armas feitas para um fim inverso: a preservação da própria vida ou a destruição de outras, às vezes pelos motivos mais banais.

E foi nessa época que aconteceu um evento que mudaria o curso das coisas. Soube que meu pai, que me abandonara ainda em criança, estava na cidade, e à beira da morte. Fui informado de que ele gostaria de ter comigo e pedir perdão. Aceitei visitá-lo, afinal, talvez com este estranho familiar eu pudesse enfim contar o que se me afigurava uma questão de vida e morte.

Quando cheguei ao seu leito, disse de chofre que o perdoava por tudo, com a condição de que ele me ouvisse e levasse aquilo para o túmulo (é, não foi a melhor expressão para o momento).

Então contei-lhe tudo, sem deixar que em nenhum momento transparecesse que eu lhe imputava culpa por sentir o que eu sentia. Deixei claro que desde sempre eu fora assim, que era taciturno e dado à leitura de autores pessimistas.

E revelei, mesmo não sendo a melhor das ocasiões, que estava às voltas com a ideia de dar cabo de mim, mas que todas as alternativas não estavam à altura da minha compreensão de como deveria ser. Ele ouviu-me atentamente, sem me interromper. Depois de algum tempo em silêncio, suspirou e disse, com dificuldade:

– Sabe, meu filho, eu nunca tive tempo para me matar.

Fiquei desnorteado com sua resposta e logo ele veio ao meu socorro, pela primeira vez:

– Depois que fui embora e deixei você e sua mãe, tive muitos contratempos, tive de mudar de cidade em cidade, de trabalho em trabalho, lutando para sobreviver e esquecer o passado.

Após um breve intervalo, falou-me com a voz embargada:

– Várias vezes pensei no fracasso que eu sou, nas pessoas que desapontei, nas minhas traições e em tudo que fiz para ferir quem me amou. Mas simplesmente a vida não me permitiu uma saída mais fácil.

Ele fez um esforço e inclinou-se. Pegou no meu ombro e disse-me:

– Depois de mais de trinta anos de ausência, não tenho autoridade nem direito para te dar um conselho. Mas posso dizer que nem todos estão destinados a sair da vida quando querem. E quando já não querem mais morrer, quando voltam a sentir a alegria, só talvez a morte dê às caras.

Naquele momento surgiu-me a dúvida mais cruel de todas: será que é possível haver um destino assim traçado? Será, meu Deus, que por isso tantas armas já falharam, cordas se romperam e, num nonosegundo, o que era para desaparecer para sempre, evaporar, acabou permanecendo?

Se até então tudo era um ato-falho, minha vida não tinha “casca” e eu havia sido poupado de inúmeros infortúnios, existiria a possibilidade de eu não poder controlar nem mesmo o meu fim?

Então pensei na possibilidade da existência de algum Deus, alguma entidade, sei lá, que houvesse estabelecido que até nisto eu não teria a palavra final.

Estranhamente, pela primeira vez, senti paz. Eu estava em paz, meu velho ficou em paz por mais alguns dias, e depois, não no tempo que ele imaginou, encontrou o que buscava.

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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