De quatro

20/02/2021

Não sei se sabem; mas houve um escritor que, tentando se colocar no filão daqueles romancistas que escrevem começos inesquecíveis em seus livros, pôs na boca de sua personagem a seguinte fala: “Ou você para de t*** com as outras ou está tudo acabado entre nós”. (Omito a grafia da palavra-chave da sentença acima por levar em consideração os leitores mais sensíveis. Perde-se a força poética, mas conserva-se a estima do leitor amigo).

Em nossa cidade ocorreu um fato inusitado quase dessa mesma natureza. Como sabem, o amor não se deixa abater por pestes e pragas. Em meio ao flagelo oriundo da China, Genialdo conheceu Roberta. É verdade: foi por meio de um aplicativo de celular, mas com qual relação, nos dias que correm, não foi assim?!

O rapaz procurava afastar a ideia de que o tédio fora o cupido entre ele e a moça. Já Roberta, por seu turno, acreditava que a paciência do rapaz em esperar o primeiro encontro havia sido o fiel da balança.

No começo as conversas giravam em torno de amenidades: gostos em comum, músicas preferidas, artistas admirados etc. Mas Genialdo, embora não fosse lido, sabia que o amor carece de formas. Passados alguns dias e já tendo seguido todos os protocolos de segurança, usou o pretexto da moda: disse de si mesmo que era um homem que respeitava a liberação feminina. Que a mulher deveria ser livre para usar o corpo como bem lhe aprouvesse. Numa palavra: definiu-se como “feministo”. Ele sabia que essa era a senha para se falar de sexo sem parecer um desesperado sexual.

Ora, era de se esperar que ela o admirasse ainda mais após a confissão. Mas houve um silêncio digital estrondoso. É preciso explicar ao leitor que a moça em questão não era propriamente “feminista”. Roberta detestava rótulos. Mas ela tinha certas, digamos, peculiaridades que podiam ser facilmente incorporadas ao movimento feminista.

Naquela noite, então, ela abriu seu credo. Disse ao rapaz que, sim, gostava de um homem submisso. Mas que não, não gostava de homem com frescura. Gostava de ser dominada, mas por seus próprios desejos: queria um homem que a permitisse entrar em águas mais profundas, por assim dizer. E não queria um homem que fizesse perguntas.

Como Genialdo não a entendesse, ela deu um exemplo. Numa relação anterior, ela exigiu que o namorado passasse três meses sem beijá-la na boca. E o sexo, então? Sexo podia. Três vezes por semana, como é de praxe entre certos casais. Mas beijo na boca, não. No começo, segundo ela, o rapaz aceitou. Passados quinze dias, ele declinou e disse a ela poucas e boas. Aliás, ela fez questão de lembrar a última frase do insultado: “Nunca vou me esquecer que você me submeteu a isso”, SIC.

Era uma moça de extremos: passava semanas sendo fria e mal respondia às mensagens de Genialdo; para, na semana seguinte, ser a mais entregue, a mais apaixonada das criaturas. Claro que isso o incomodava a princípio. Mas fazer o quê? Estava, como ele mesmo dizia sem pudor aos amigos de bar, “de quatro” por ela.

Tudo ia bem, apesar de alguns protestos de certos amigos; amigos que, dia após dia, passaram a ser inimigos. Inimigos do amor. Roberta fazia o rapaz se sentir seguro; tal segurança, ainda que tivesse sua estranheza, só podia gerar inveja nos demais, pensava ele.

Ele poderia até definir sua paixão, como bem a definiu certo poeta, como sendo uma “doce tirania”. E se é verdade que o hábito faz o monge, faz também o bom namorado.

Ele aceitava as restrições e idiossincrasias da moça sem perguntas, sem chiliques. Numa semana viviam um idílio amoroso sem precedentes. Na outra, eram apenas estranhos um ao outro. E tudo era interessante até deixar de ser (até a anormalidade tem seu tédio).

E, depois de impor as mais duras restrições; depois de caprichar à vontade, trazendo à baila seus desejos  mais heterodoxos; depois de ver que nada mais era estranho ao rapaz – nem mesmo aquele mês em que ela exigiu do rapaz que o sexo fosse feito por outra via que não a convencional, pois havia lido, num artigo científico de uma universidade chinesa, que o carona gostava de se esconder em certo orifício… e que só o confronto com outra força da natureza podia extirpá-lo de lá… enfim, depois de tudo, Roberta cansou de Genialdo.

E terminou exatamente como começou. Do nada, sem briga, sem revoltas, mas também sem entendimento. Apenas com uma mensagem que chegou a ele por terceiros: estava solteiro novamente.

E sejamos justos: Genialdo agiu exatamente como aprendera com ela. Não fez perguntas. Não foi atrás de saber o porquê. Sofreu em silêncio resignado, feito um verdadeiro estoico do amor. Mas, como disse o filósofo Heráclito, ele, Genialdo, já não era mais o mesmo e o rio também não. Voltaria a amar, nosso jovem rapaz? Sim, mas à brasileira: não amaria mais nada que não o fizesse relinchar.

Urra!!!

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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2 Comentários

  1. Kevin Wilton

    Cara, parabéns!

    Você escreve muito bem. Acredito que vi algumas nuances machadianas: achei muito bom.

    Deus abençoe.

    Responder
    • Marcos Alexandre

      Muito obrigado, meu caro. Aqui vai o agradecimento atrasado.

      Responder

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