Espectros

12/02/2022

 

Àquela altura da história, o medo já tinha destruído parte da esperança. Pela consciência, melancólica e conturbada, fluíam cenas de mortos e mortes – que se sucediam em renitentes e assustadoras reprises. Pelo mundo inteiro, filhos do carbono e do amoníaco criam monstros que vagueiam na escuridão. Escuridão profunda, tão profunda, que nos levou de volta à caverna – pelo mito das sombras e das penumbras que desinformam e permeiam as resistentes teias digitais. Os espectros, por mais aterrador que pareça, acostumaram-se, resignada e mansamente, à condição de prisioneiros, cortejando a morte e brindando o caos.

Muitos de nós, adormecidos, perdemos a tarde da vida… E não recordamos mais, mesmo que vagamente, de como fora o nosso amanhecer: as primeiras imagens, as melhores e mais pueris ‘traquinações’. Parecemos, deveras, saturados, maquinando conexões cerebrais que não funcionam em mentes colapsadas pelo calor, desnaturadas. O que preocupa é que o despertar pode ser tardio.

Poderemos voltar à realidade não sequelados, quando restarem apenas as percepções da persistência das nossas retinas; telas, quadros mentais, flashes da vida de pessoas que nos foram caras e dormem no etéreo? Quando a vida se resumir a imagens e sons, desligada do tempo que nos aprisiona e aflige; quando, ao anoitecer, em todas as denotativas e talvez acusadoras noites futuras, alheias à conotação sombria que a figura do negrume das madrugadas nos causa – angustiando insones e noctívagos –, tivermos que abraçar o travesseiro das nossas consciências, que verdades aparecerão em nossas telas mentais? Sentiremos o calor do abraço do pai que perdemos? Soluçaremos ao lembrar do filho que se foi, prematuramente? Virão até nós as reminiscências da infância, as brincadeiras sadias, as quedas, os nãos, as orientações paternas, os medos? Teremos tempo para recordar as melhores caminhas, pedaladas, malhações, flertes – será que ainda se proíbe o charme da conquista, entendendo-o como pecaminoso? Deu saudade dos foras que levei – eles adocicaram as conquistas!

Nossas mentes têm andado em círculos, dentro da espiralada e desconexa vida, que também andou – a passos largos, linearmente. Portas se fecharam. Famílias foram dilaceras e mantêm o luto. As janelas perderam o brilho das donzelas, das moçoilas, das menininhas, das senhoritas, das cocotinhas, dos brotinhos, das ficantes…

O metafisico se diluiu na falsa percepção dos sentidos e nos afastamos de Deus, transcendência que nos completa e dá real significado à vida. O homem que se permitia entregar-se à natural clausura e ao silêncio, hoje esbraveja irreflexivamente. Faltam oração e perdão; sobejam impropérios tolos e cólera. Alheio a esse homem, o tempo sangra, arrancando lágrimas, saudade, mas, apesar de todo o presente sofrimento, cá estamos, cheios de boas esperanças.

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