História de um cretino

07/08/2021

Lição de vida número um: a expectativa é a mãe da decepção.

Logo que o divórcio saiu, um colega de trabalho veio me visitar. Não precisou dizer nada: a pena estampada em seu olhar disse tudo.

“Nada mau”, disse o cretino acerca do apartamento. As pessoas são fracas demais para dizerem a verdade na hora certa. Preferem dar doses homeopáticas do que pensam sobre nós usando o velho e surrado álibe: “é brincadeira”. Chamam de brincadeira o que não ousam chamar de Verdade.

Meu colega deu uma olhada no armário em busca de comida enlatada, talvez. Esses idiotas pensam que a vida é um filme americano. E que a separação é a pior das tragédias para um homem.

Vi que ele abriu a mochila. Sacou dois livros – era metido a intelectual. O intelectual de província é minha piada preferida.

“Toma”, disse o inteligentão. “Dá uma lida e vê se aprende alguma coisa”. Espiei os títulos. Dom Casmurro e São Bernardo, respectivamente. Curioso: sempre odiei esses dois aí. Agora vou odiar este cara que pensa que pode me dar lição de moral usando literatura.

“Já li”, eu disse. “Eis o meu veredicto: os dois são culpados”. Como ele não entendeu, fui sumário: “dois caras vivendo uma crise da meia idade buscam alívio e redenção ao escrever sobre seus fracassos. Culpados”. Franzi a sobrancelha. Vendo que não havia debate possível com um homem ensimesmado, ele aluiu.

Eu estava mentindo. Não cheguei a ler os livros, mas sabia de cor os enredos. Todo mundo escuta essas histórias de homens cretinos em busca de perdoarem a si mesmos de suas cretinices. Sou um tipo de cretino diferente. Não só aceito como abraço meu destino cretino.

Desde que ouvi, aos nove anos, minha mãe comentando com uma comadre dela que eu era esquisito, meio bruto, passei a me conhecer e me aceitar. Pronto, este sou eu. Fim.

Eu sabia disso quando conheci Celeste. Mas o bicho humano se sabota o tempo todo.

Durante longos anos fui um cretino em doses aceitáveis. Até o dia em que, cansado de fingir, dormi com a melhor amiga dela em busca de salvação.

Se fosse um cretino mediano, poria a culpa na própria Celeste. Foi ela quem meteu a amiga em nossa casa. Enquanto elas trocavam confidências, fofocas, eu só pensava naquele verso: “Quando um corpo encontra outro corpo, todo excesso é pouco”. Eu precisava, urgentemente, voltar a sentir minha repugnância.

Celeste era tão ingênua que não via meu olhar de lascívia; não dava conta de como eu a deixava de lado para conversar com a amiga…

Pensei em falar com ela, dizer que não dava certo ter aquela amiga tão perto de mim… tirar, enfim, a máscara. Não o fiz.

Lição de vida número dois: não interrompa quem está te ajudando.

A amiga continuou a frequentar nossa casa, cada vez mais. Vinha de uma separação recente, traumática. Dei o golpe de mestre dos cretinos: o ombro amigo. Vocês sabem como é: uma coisa vai levando à outra… um vai se abrindo com o outro… um abismo vai chamando outro abismo. Está na bíblia dos cretinos.

Recordo o olhar de decepção e espanto de Celeste quando não só revelei que tive um caso, mas também a agradeci por isso.

Ela ficou atordoada quando eu disse: “Obrigado, Celeste. Você me salvou”. E fui embora.

Nunca disse que havia sido com a amiga. Não sou desses cretinos que gostam de pôr mulher contra mulher. Meu problema não é com o sexo oposto.

No duro? Meu problema é com os cretinos de hoje. Os cretinos de hoje precisam se esforçar muito para alcançarem o meu nível. Ficam aí, depois de fazerem merda, nos bares enchendo a cara, chorosos, arrependidos; chegam ao ridículo de se roerem ouvindo músicas de término de relacionamento. Ou pior: voltam a morar com os papais. Eu não.

Há ainda uma matilha mais horrenda, por assim dizer. São os cretinos que se dizem contra a cretinice. Hipócritas, querem se passar por bons moços, compreensivos, inofensivos, eunucos modernos. Raça de víboras! Vocês não me enganam! Agora mesmo estou farejando vocês através da tela do computador.

Lição de vida número três: só conte uma história se você não tiver medo de como ela termina.

Não temam por minha vida, mesmo eu sendo um cretino. Sei que alguns podem até ver certo charme em um homem ser tão honesto acerca de sua escrotidão. E até desejarão que eu não faça nada contra mim mesmo. Ingênuos!

Outros, ao terminarem de ler este singelo relato, desejarão que venha sobre mim um castigo bíblico. Ignoro a ambos. Já disse: sou um cretino diferente.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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