Literatura Medieval Portuguesa: o mistério “cantigas de amigo”

24/06/2022

A Cantiga de Amigo do Trovadorismo ibérico, como sabemos, é totalmente autóctone. Não existiu em nenhuma outra literatura europeia da Baixa Idade Média. Eis então o que os retóricos latinos chamaram de Punctum saliens, um ponto controverso. Por que o Provençalismo não continha tal expressão lírica? Como e por quê somente se desenvolveu em Portugal e, levemente, na Espanha?

O Provençalismo europeu, partindo das cortes suntuosas e refinadas do Sul da França, foi nitidamente palaciano. O espírito campesino, a ligação com a natureza pouco inspiraram os trobadours franceses, italianos e alemães. No entanto, em Portugal e na Espanha tal presença da Natura, seja no campo ou no litoral, foi muito marcante. A Cantiga de Amigo não se originou no palácio. Formas poéticas como a barcarola, a bailia, a canção de romaria têm elementos temáticos profundamente ligados ao campo. A Cantiga de Amigo não é aristocrática como a chason d’amour que se espalhou pelo resto da Europa. Qual a origem, então, deste forte elemento telúrico presente na Cantiga de Amigo?

Antes de tentarmos responder a tais questões tão cruciais, é preciso ainda evocar dois pontos sobre esta misteriosa forma poética. O primeiro é o constante diálogo que ocorre entre o poeta e a amada. O segundo, interligado com o primeiro, refere-se à presença da vox femínea incorporada pelo vate. Os diálogos, cremos firmemente, procedem da poesia goliárdica, bem como as origens desta composição. A voz feminina que o poeta representa não se deve identificar, de nenhum modo, com o famigerado Eu Lírico, cousa falaciosa que já deveria ter sido banida da crítica literária séria. Homo poeta est et poeta homo. O homem é o poeta e o poeta é o homem.

Julgamos então que o enigma das origens da Cantiga de Amigo resolve-se da seguinte maneira. Tanto as presenças temáticas da natureza como a fingida voz feminina procedem da ancestral poesia dos Goliardos. Esta, como é sabido, foi fértil e seminal manifestação poética escrita em Baixo Latim desde o século IX ao XIII.

Aqui não nos permite o reduzido espaço, mas multa exempla poderíamos citar. Um ao menos aduzimos. A Cantiga goliárdica de número 68 presente no Carmina Burana. Tem apenas três estrofes, já em ritmo acentual, com rimas e versos redondilhos menores. Nela há uma cena campesina breve, na qual uma rustica puella (menina rústica) dialoga com um goliardo (scholar) e, ao final, o convida para o amor. A voz é feminina, tal como na Cantiga de Amigo: “Quid tu facis, domine / Veni mecum ludere” (O que fazes, meu senhor; vem brincar comigo.)

Em suma, para nós é de clareza meridiana: a origem misteriosa das Cantiga de Amigo encontra-se, in nuce, na esquecida poesia dos errantes Goliardos. Valete!

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

 

MAIS Notícias
Nomen Est Numen
Nomen Est Numen

No segundo ato, cena II de Romeu and Juliet Skakespeare escreveu: What’s in a name? That which we call a rose by any other name would smell as sweet.” É uma das falas da doce Julieta. Ela interroga sobre a importância de um nome e diz que uma rosa chamada por outro...

VESTIGIA
VESTIGIA

Sócrates, conforme os escritos de Platão, foi o principal veiculador da teoria da Recordatio animae. A teoria da Recordação. Possivelmente as raízes mais pretéritas dessa profunda teoria encontram-se na esotérica religião egípcia, a qual foi assimilada por Pitágoras e...

Devaneios Machadianos III
Devaneios Machadianos III

“The rest is silence...” Skakespeare   No dia 11 de setembro de 1859, Machado de Assis escreveu: Afinal tudo isso desaparece como fumo que o vento leva em seus caprichos, e o homem à semelhança de um charuto desfaz a sua última cinza, quia pulvis est. Aqui não é...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *