MALENA

14/10/2023

“J la reconnaissais…” Gerard de Nerval

I.

– Quem é Malena?

– Não é possível que você não lembre. Eu estava com ela naquela noite, no restaurante, na praia?!

– Francamente não lembro.

– Vocês todos querem me enlouquecer. Ninguém se recorda dessa mulher. É absurdo.

– Não lembro, não lembro mesmo. Mas o que te perturba tanto? A relação já não acabou? Ela não foi embora?

– Foi. Desapareceu completamente. Eu tenho que contar ou vou perder a razão. Não há explicação.

 

II.

Nós nos conhecemos no Giorgius, aquele antiquário que fica na esquina da praça, há uns três meses. Eu sempre comprava livros e discos antigos lá. Ela veio até mim. Foi direto, foi intenso. Ela acolhia cada pensamento meu. Era como se eu nem precisasse falar. Encontrá-la foi como chegar de uma longa viagem e poder descansar. Mas você vai me dizer: “Você sempre se apaixona assim. Entrega-se.” Não. Foi totalmente diferente. Eu sei que já tive outros amores. Uns até duradouros. Mas Malena era singular, não se parecia com nada antes. Como posso fazer você entender? Imagine que nunca ouviu Mozart, que nunca viu Rembrant, que nunca leu Skakespeare ou Fernando Pessoa. Não sabe que existem. Vê e julga em metade. Então eles surgem. O que era o auge, o ápice não pode ter mais qualquer sentido. Malena foi luz que fez sombra a tudo e a todos. Entendimento de almas perfeito. Infância recuperada. Plenitude a cada instante. Beijo e sexo finalmente juntos. Não se cansar, não querer parar de conversar, de olhar, de tocar. Tudo convergindo. Nada fora do lugar. Não seria possível conceber – eu pensava antes assim-  um sentimento sempre em apogeu, sempre num eterno over a transbordar sobre a fria realidade da vida. Mas era assim com Malena. Então fiz planos, pus nela o meu futuro e esqueci todo o meu passado. Tenho certeza, embora eu fosse o principal envolvido, de que não era só a embriaguez passional. Não era só a mágica da paixão que costuma nos cegar. Era outra coisa mais séria, indefinível, misteriosa. Era outra coisa.

– Mas quem era ela? De onde veio? Você ainda não me disse.

– Ela me contou que vinha de uma pequena e antiga família de imigrantes italianos. Da Úmbria. Estava mudando de endereço. Eu nunca conheci ninguém de sua família. Tudo o que eu tinha era o número do seu telefone. Mas deixe-me terminar. Felicidade. Foi sobretudo a pura felicidade o que tive com Malena. Bastava estar ao lado dela. Uma praça, um restaurante, uma festa ou em casa. A mesma euforia. Êxtase e ao mesmo tempo paz e calma como jamais havia experimentado. Perfeito; era tudo a perfeição. Sem uma rusga, uma mácula, um pecado no Paraíso.

– Mas por que terminou? Como?

– A culpa foi minha. Ou melhor, dela. Como posso saber?

– Conte-me.

– Ainda estou tentando entender e aceitar. Não, não há como aceitar. Aconteceu num final de encontro…

– Espere. Vou interromper. Diga como ela era, descreva essa mulher. Agora estou mesmo curioso.

– Está bem. O detalhe mais singular em Malena era a cor dos seus olhos. Um tom verde esmaecido, quase cinza. Eu pensava num dia de chuva quando a olhava fixamente. Ela sorria. Um sorriso antigo. Lábios finos. O rosto de santa. Vitoriana nas maneiras. Muito, muito arguta e inteligente. Impressões profundas, como se já tivesse vivido tudo. Mas eu preciso terminar. Foi surpresa, foi muito estranho. Nós nos despedimos naquele dia e eu julgava vê-la depois de dois dias. Então ela me disse tudo aquilo. Lembro todos os dias cada palavra e procuro explicações. “Amor”, calmamente ela olhou-me e prosseguiu: “Vá amanhã às sete da noite (a mesma hora em que nos conhecemos) ao Giorgius”. Eu não entendi. Ela continuou: “Se tem amor por mim, não falte. Vá amanhã. Estarei lá à sua espera. E tudo será eterno. O que vou dizer é sério e verdadeiro. O amor não pode pertencer ao rio. Só possuímos o passado. O amor caminha até um cume de onde depois só vem a declinar. Um vinho que se torna amargo se o bebermos até o final. Eu não posso explicar. Apenas faça o que peço. Se você for amanha me encontrar nós viveremos sempre o mesmo que vivemos. Pleno, forte e eterno. Serão os mesmos dias numa repetição sem fim. Iguais, mas puros e imorredouros. Desde o primeiro dia até o dia de hoje. Tudo o mesmo, sempre se repetindo. Sem nenhuma perda ou mácula no sentimento. Você não terá cansaço ou achará que está preso num eterno círculo. Será feliz. A roda não girará até a morte. As águas não correrão para a dor. O paraíso no amor é o Mesmo. A repetição da felicidade antes da perda. Vá e viveremos tudo sempre belo. O espelho sem rugas. O corpo sem doenças. A alma sem adeuses. Vá. Eu o espero. Às sete em ponto.”

– Isso é pura loucura! E o que você fez? Você foi?

– Não fui. Eu ainda tentei argumentar. Achei tudo poético e pensei ser uma espécie de jogo de sedução. Mas ela partiu séria, com uma expressão trise. Fiquei muito preocupado. Eu tinha uma reunião de negócios no dia seguinte e não poderia faltar. Não fui ao Giorgius. No entanto, logo que cheguei da minha viagem telefonei para ela. Fui informado de que o número, o mesmo que eu sempre ligava, não existia! Desapareceu. Simplesmente sumiu! E sequer as pessoas que nos viram juntos, umas poucas, nem se lembram dela. Nem você.

– Não posso acreditar nisso. Ela era um fantasma então, uma alucinação?

– Não sei. Já nem sei o que pensar. Temo enlouquecer.

– Mas há um jeito de provar a sua história. O Giorgius fica no centro da cidade. Há muitas câmeras ali. É só pedir para ver.

– Eu já fiz isso. Ela não aparece em nenhuma imagem. Eu estou sozinho. Eu estou sozinho.

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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