O CAMINHO

14/08/2021

“Missing me one place, search another;

I stop somewhere, waiting for you.”

Walt Whitman

 

Por que o tribuno Flavius Macer, da XVII Legião, Augusta Felix, aquartelada na Síria, tomou o caminho de volta para Jerusalém?

– “Tribuno! Tribuno”! Os guardas na torre de vigia ainda gritaram muito quando o viram cruzar o grande portão logo ao nascer do dia. Mas ele se foi sozinho, sem nenhuma escolta e sem qualquer explicação. O general da legião, Titus Lepidus, primeiro ficou aturdido. Depois ficou em fúria e ordenou a duas patrulhas que o caçassem como a um desertor. Que intenções tinha Flavius Macer? O que buscava naquela direção?

Flavius era de uma família da ordem equestre, grandes proprietários de terras no sul da Itália. Fora educado com primor, viajando até para Atenas para ouvir os filósofos. Jovem entrara para o exército. Lutara na Gália, na Hispânia e para além do Reno. Tinha agora quase cinquenta anos e alma ora em torpor ora em desassossego.

Em Roma uma esposa o esperava. Sem filhos. Era bem considerado entre os seus pares, tanto na esfera militar como na política. Fora uma vez até convidado para um dos banquetes no palácio de Tibério. Cumpria regularmente os rituais para com os deuses. Marte em primeiro lugar. Júpiter romano e Minerva vinham depois. Possuía muitos escravos, bens variados e uma confortável quinta perto do Aventino.

Dir-se-ia que o tribuno Flavius era um perfeito romano. Um homem bem posto e adaptado ao seu tempo e lugar. Não era. Desde cedo, talvez vendo as guerras, talvez vendo a pobreza ou sem motivo aparente, atingia-lhe o Ser o terrível vazio da existência. Mesmo sabendo que Roma era a definitiva luz para aquele escuro mundo de bárbaros, mesmo assim havia trevas e incompletude naquela luz.

Nas viagens e campanhas militares Flavius viu como os bárbaros viviam e lutavam feito animais. Mas também os próprios soldados romanos, inclusive os oficiais, eram somente instinto. Vinho, mulheres, ouro, escravos. A espada sempre a reinar. O cheiro de sangue nas mãos. A espera na alma desolada.

Agora o tribuno estava completamente sozinho. Parara à noite e fizera uma fogueira junto de uma pequena caverna. Exausto, quase a adormecer, lembrou-se de uma jornada guerreira no sul da Gália. Um massacre de uma pequena tribo selvagem. Roma sabia ser impiedosa. A lembrança era sobre uma escrava da tribo que lhe coube por espólio. Não era educado recusar. Ele nem pensou nisso. Seu nome era Kaila. Alta, esguia, os cabelos longos em cachos da cor da terra. Os olhos de um castanho que têm os montes ao entardecer. Triste. Ela passou muitos meses triste. Talvez lembrando-se de sua gente, de sua terra, de seus deuses. Flavius achava bizarra a sua língua gutural e cacofônica. Mas mesmo assim havia encanto nela até mesmo a falar tão bizarra linguagem. Demorou para que ela compreendesse e pronunciasse algo no suave latim. Compreenderam-se primeiro, e melhor, no leito. Foi o único amor do tribuno. Esposas romanas são frias e solenes como Juno. Kaila era Vênus. Uma Vênus peregrina e terna. Algo naquela escrava chamava por longas distâncias, soava como música estranha, parecia suprir enormes vazios. Ela tinha um pouco de paz e a ofertou ao pobre tribuno. Kaila morreu num final de outono. Uma febre repentina a levou em poucos dias.

Teria a branda alma da doce escrava ido encontrar os seus deuses? O que pensava sobre a alma o peregrino tribuno? Certa vez, agora veio à memória, assistiu a um acirrado debate em Pérgamo sobre o destino após a morte. Filósofos do Platonismo defendendo o Inteligível e que nós vemos e vivemos como meras sombras. Que perdemos algo divino muito preteritamente, mas que podemos um dia recuperar. Estoicos a defender a vida como sentença, como regra a ser cumprida austeramente. Um dia, segundo eles, voltaremos ao Fogo Sagrado. Os seguidores de Epicuro afirmando apenas o caos e a morte da própria alma a ser desfeita para sempre em seus átomos sutis. E havia ainda os Céticos e os Cínicos negando tudo sistematicamente. Naquela noite Flavius embriagou-se com aquela retórica. E com o bom vinho servido. Mas acordou vazio como sempre e ainda sem rumo…

As palavras podem nos confortar. E também nos enganar. Vozes interiores podem ser insidiosas e mentir. Milagres e dádivas podem ser ilusões; disfarçadas maldições. Onde a certeza? Onde a Luz? Flavius viu a morte no olhar de muitos homens. E de Kaila. Era como uma vela a se apagar. Simplesmente. Um barco silencioso saindo do porto.

Por muitas léguas cavalgou ainda o tribuno. Quando parava para o descanso os pensamentos o atingiam como flechas partas. Agudas e mortais. Já na colônia da Judeia, cruzou com uma caravana:

– “Salve, Tribuno. Vais a Jerusalém?”. Indagou-lhe um velho beduíno.

– “Sim. Talvez… Sim, certamente vou.”

Estava longe do seu destino. Estava perto do seu destino. Seguiu adiante. Às vezes, angustiadamente, revia os seus passos. Toda a vida fora um romano genuíno, um servidor da família e do estado. Seguira fielmente os ritos da Religio. No exército seguramente chegaria a postos mais elevados. Tinha a consideração e o respeito de todos. Por que fugira? De que fugira? Onde esteve, onde estava todo esse tempo tão longe e tão diverso de si?

Assim, passadas muitas colinas amarelas qual o trigo envelhecido, passados montes íngremes de pedras quase impossíveis de trilhar, Flavius percebeu que já não trazia mais o seu gládio, a sua adaga e até estava rota a sua couraça militar. Para que os haveria de querer? Estava sozinho como nunca havia estado. Estava acompanhado apenas pela sua pobre e franzina alma. Com medo. Com esperança….

E a sombra do seu cavalo, já exausto, seguia longilínea pelo vasto deserto…

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Por que o tribuno Flavius Macer, da XVII Legião, Augusta Felix, aquartelada na Síria, tomou o caminho para Jerusalém?

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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