O curioso caso do porteiro Juvenal

17/04/2021

Primeiro dia de aula. Buzinas. Cara postiça de alegria da senhora direção. “Sejam muito bem-vindos!”, dizem, em uníssono, as professorinhas do infantil. Tudo muito falso. Sirene. Abrem-se os portões. Evoco a passagem bíblica em que Cristo fala sobre os portões e sorrio.

“Primeiro as crianças, pois delas vêm o terror da coordenação”. É o que diriam, se pudessem. Depois entra a turba de adolescentes. Nada novo. Trabalho nisso há vinte anos. E o primeiro dia, para mim, é só mais um dia.

Meu nome é Juvenal e sou porteiro. E, sim, sou motivo de piadas e meu nome é usado para trocadilhos infames. Aguento tudo calado. É, eu sei, pegou mal o que eu disse.

“Droga, não faço nada direito”, digo para mim mesmo, mas bem que essas poderiam ser as palavras do chefe. Por que acabamos imitando quem odiamos? Vai saber?! Não sou filósofo, nem sábio nem nada. Só porteiro. Porteiro não serve apenas para abrir portas. Serve também para observar. É assim que pago o leite das crianças: ficando de olho.

Detesto o primeiro dia porque os corredores ecoam entusiasmos. Tudo muito falso. Gosto mais dos finais dos semestres, quando as portas, os corrimões e as árvores da escola me sussurram segredos.

Não, não sou fofoqueiro. E nem ligo para o que ouço nas rodinhas. Os corredores das escolas me dizem outras coisas. Dizem qual é o meu lugar, decerto; mas também me falam sobre as pessoas. Quem é quem: os infelizes, os órfãos de pais vivos, os futuros depressivos etc. Numa palavra: esqueletos no armário.

Não vejo as fardas, nem os sorrisos, nem a beleza da juventude, só vejo isto: os esqueletos. Cada um com o seu e todos me interessam porque todos nós temos esqueletos, não é mesmo?

Há uma aluna, novata, que lê enquanto todos gargalham e fazem troça dela. Olho e penso com meus botões: “Esse esqueleto é novo por aqui. Devo me apresentar?” Ah, não. Todos me conhecem. Juvenal, lembra? Odeio este nome.

Confesso que os esqueletos que leem são os mais difíceis de decifrar. Não me refiro aos falsos esqueletos leitores: os que leem sagas imbecis sobre vampiros emasculados. Ou pior: fingem que estão lendo para provar inteligência. (Olho e vejo que o livro está intacto, alvo, do jeito que foi comprado. Tudo é muito falso mesmo). Noto que o livro que ela lê é gasto, antigo.

Ah, ela está lendo o velho Machado! Ora, bolas. Sou porteiro, mas não sou iletrado. Aliás, já li mais que os professores de literatura e português da escola. Sim, senhor: sou amigo do velho Puskas, dono de sebo, e foi ele quem me disse uma vez: “Você é proletário, precisa ler para a elite não pisar em você. O livro é um objeto retangular que empina a cabeça do pobre”.

Grande Puskas!

Chego em casa à noitinha. Minha mulher vê novela. Meus filhos estão no celular – Vou ter de aguentar mais um ano no trabalho se quiser pagar as prestações, penso.

Ela me pergunta, mesmo sem interesse, como foi o dia. “Normal”, digo. Devo comentar que surgiu um novo esqueleto, um que lê Machado? Não. Ela iria me interromper para falar sobre a vizinha, sobre a novela, sobre o diabo das contas. Ela insiste em saber como foi na escola. Minha mulher finge se interessar pelo que não lhe interessa. Tudo muito falso.

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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