O estrangeiro

27/07/2019

(Por ocasião do meu aniversário)

Foi Agostinho de Hipona quem formulou, numa célebre frase, a melhor definição da onisciência divina: para ele, Deus lhe era mais íntimo do que sua própria intimidade. Embora eu seja um cético incorrigível, tenho cá para mim que faz todo o sentido tal intuição.

Só um ser transcendente poderia conhecer o que nos é estranho, a saber, nossa própria vida interior. Mas este texto não é sobre os insondáveis conhecimentos divinos, e sim sobre a inabarcável contradição humana. Errou, portanto, o filósofo francês ao afirmar que depois dos trinta anos, o homem seria dono do de si, do próprio rosto. A bem da verdade, somos imprevisíveis para nós mesmos até o fim.

Eu tenho sido um “estrangeiro” a mim mesmo.

Conta-se de um certo poeta romântico uma anedota ilustrativa. Certo dia ele resolveu bater à porta de um amigo pela madrugada. O amigo, assustado, perguntou em alta voz:

– Quem és?

Ele teria respondido:

– Pelo amor de Deus, é só isso que desejo saber.

Nunca tive vocação para a misantropia. Mas ninguém, nenhum amigo ou mulher que nos sejam íntimos, poderá responder a tal pergunta.

Ser estrangeiro a si mesmo e até a Deus. Sim, a Deus, porque em certo sentido o ser divino não poderá responder a esse dilema humano. O cristianismo procurou, de forma até gentil, dar aos homens uma identidade. Segundo o evangelho, somos filhos e filhas do Aba, amados por Deus pai. Mas creio que nenhum suicida morreu porque lhe faltava essa informação. Isso porque há, nos meandros da alma humana, uma culpa inesgotável que ecoa em doses homeopáticas. Um fosso intransponível que forma diques entre nós e nós mesmos.

“Quando você olha para o abismo, o abismo estará olhando para você”, (Nietzsche). “Perder-se para poder achar-se”. Uma ideia romântica que matou mais que a gripe espanhola. Desprovido de todas as idealizações da juventude, resta ao homem de certa idade sua última prisão: a nostalgia. Camus dizia que ela se manifestava mais a partir de certa idade. À medida que homem envelhece, começa a remontar à infância. Evoca momentos de felicidade, de desprendimento que, pensa, o tornavam feliz. Prisão doce: a fuga ao passado distante tornar-se sua “nostalgia”, seu lar, em grego. O que fazer? Enfrentar um presente confuso, frustrante por mais das vezes, em nome do realismo? Ou fugir dele desesperadamente em busca do “Tempo perdido”?

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor. 

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