O livro não escrito

12/03/2022

 

Há seis modos de começar uma história. Tudo depende do enfoque que se quer dar, como diziam os nossos jornalistas. No que me diz respeito, não vejo como uma escolha difícil – e, sendo assim, começo pelo “quando”, o tempo.

Foi no fatídico 7X1 de Brasil vs Alemanha. Tudo começou ali.

Costumávamos assistir aos jogos na casa de amigos, sempre alternando. Nessa época eu acreditava em muitas coisas, inclusive na amizade. Lembro-me da feição de cada um que ali estava após o massacre. Todos tomados por uma incredulidade, mais que tristeza.

Fim de jogo, todos permaneceram. Alguém pegou um violão para “desopilar”. Súbito, fez-se o comentário:

– Esses alemães! Só vem coisa ruim de lá, tipo Hitler.

– Hitler era austríaco, não alemão, interveio uma voz feminina.

Tentei identificar de onde vinha a voz. Era uma moça franzina, que estava como que escondida atrás dos outros. Seus cabelos a cair sobre os ombros; trajava um vestido floral, discreto. Achei apenas curioso. Nada demais. Na mesma noite soube que ela namorava um tal de Serginho, que também estava lá. Cutuquei o meu amigo Rogério. “Essa aí dá certo contigo. Nerd também”, provoquei.

E de fato, eles acabaram palestrando sobre temas variados. Falaram de filosofia, arte, cinema, dentre outros bichos. Vocês precisavam estar lá. Os olhos ávidos dos dois, a boca que ria em concordância, um verdadeiro encontro nas barbas do namorado da moça, que aliás não estava nem aí para a conversa.

No outro dia eu disse ao Rogério o seguinte:

– Camarada, anota aí: vocês vão acabar se entendendo. E minha profecia não demorou a se realizar. Ela rompeu com o tal Serginho, e engatou um romance sigiloso com o Rogério. Só eu sabia.

Meu amigo, embora mais novo que eu, tinha certa experiência inata. Sabia que era um erro comentar sobre relações amorosas com outrem. Não se abria, embora eu insistisse. Mas seus gestos o traiam. Era notável a mudança no semblante dele. Tudo nele gritava: “Eu encontrei, Carlos, eu encontrei o amor da minha vida!”

Outro fato curioso: mesmo após assumirem a relação e mandarem o Serginho às favas, os dois não saíam mais com a turma. E não era por receio de o ex aparecer. Ex sempre aparece. Todo ex é um fantasma. O que eu percebia é que nada no mundo mais os interessava além da companhia deles mesmos.

Um dia, porém, eu recebi uma mensagem dela. Achei estranho, afinal ela nunca gostou muito de mim. Rogério deixou escapar, uma vez, que ela me considerava má influência. A mensagem, via Orkut, dizia mais ou menos assim: “Converse com seu amigo. Ele não está bem”.

Soube que ele havia realizado uma cena de ciúmes de proporção bíblica. Parece que viu no celular dela uma mensagem de um dito amigo que nutria sentimentos por ela. Não havia nada demais. O amigo só lamentava o fato de ter sido preterido após ela ter ficado solteira.

– Você não enxerga, Carlos?! Ela deu esperança a outro enquanto namorava o tal Serginho.

– O passado está no passado, eu disse. Não perca essa moça por uma bobagem dessas.

Eu conhecia o Rogério. Sabia o quanto ele era exigente. Sabia que iria sofrer. Sabia que seria difícil ele achar alguém como ela em nossa cidade.

Eles acabaram por reatar. Mas o ciúme não se emendou. Nesse tempo ela passou a conversar muito comigo, chegava até a se abrir. E foi dela que eu soube os detalhes da história deles.

A fórmula era sempre a mesma. Ela dizia “Não entendo por que ele está inseguro se eu já…”. E contava uma prova de amor, uma declaração, uma senha que só eles sabiam. Eu ficava tão impressionado com a franqueza daquele amor, com a originalidade de tudo aquilo que pedia sempre mais detalhes.

Não era mera curiosidade. É que eu era o avesso dos dois. Eu era superficial, fugaz, escorregadio. Nunca vivi nada tão intenso – sempre que as coisas estavam sérias, eu dava um jeito de sabotar. Aquelas histórias de dor e alegria que ela me contava pintavam um painel na minha cabeça.

Talvez desse um livro, se eu fosse chegado a escrever ou mesmo a ler. Mas, lembre-se: eu era o avesso de todo amor. Com o tempo e as conversas com ela, algo mudou em mim. Passei a ler alguns livros, ainda que fracos. Ela às vezes me indicava um filme, uma música. E com isso ela dava a entender o que sentia, ao seu modo. E as coisas foram seguindo certa ordem natural.

Existem, eu disse no começo, seis modos de começar uma história. Para algumas pessoas, o lugar em que se conheceram faz toda a diferença.  Já outras gostam de começar pelo “como”, o modo pelo qual tudo aconteceu.

Eu escolhi, deliberadamente, começar pelo dia dos 7 x 1 entre Brasil e Alemanha. Porque existem coisas que acontecem sem que a gente perceba que de fato aconteceram. Naquele dia triste para toda uma nação, eu conheci, sem o saber, a mãe dos meus filhos. Tempos depois, presenciei a história de amor de um amigo querido com essa mulher, e pensei que eu seria o padrinho do casamento. As coisas simplesmente estavam acontecendo, e eu nada tinha que ver com isso.

Eu fui primeiro o conselheiro, depois o confidente, o espectador de tudo, para depois ser o amante.

Dizem que nem mesmo os alemães estavam acreditando no que viam, gol após gol. Soube-se depois que eles entraram em campo sem esperar muita coisa… Estavam no Brasil e era contra este Brasil, pentacampeão mundial, que jogavam. Não seria vergonha ver o trunfo do rival. Mas a história aconteceu naquele dia. E a minha história, que jamais colocarei no papel, assim foi.

Rogério casou-se tempos depois. Nunca mais nos falamos muito. Mas soube que ele não guarda ressentimentos. Dizem que chegou a escrever um conto após saber que me casei com ela. Espero que os estilos não coincidam. Espero que ele não tenha começado pelo jogo.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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