O profissional. A Rubem Fonseca

24/06/2023

— Aqui nesta cidade não chove, disse o garçom.

Eu usava uma jaqueta de couro preta e listras vermelhas, à lá forasteiro. Pedi uma cerveja barata ( tinha dinheiro para uma mais cara) e fiquei na última mesa, que era sombreada por uma árvore grande, na penumbra.

Olhava o relógio. “Mais um é menos um”, eu me lembrava de um filme que tinha visto no cinema.

Corria o ano de 2003 e falávamos abertamente sobre qualquer coisa : cinema, política, mulheres.

Pessoas transitando nas ruas. Conversas amenas no bar.

Notei uns olhos grandes fitando a mesa onde eu estava.

Era uma estudante de uns vinte anos, no máximo. Eu imbicava para os quarenta e dois. Volta o garçom.

— Nesta cidade há poucos estudantes universitários. A maioria é mulher, ele disse.

— Aquela ali é uma, e não tira os olhos do senhor.

— Estou fora do mercado amoroso. Se ela perguntar alguma coisa, diga que eu falei isso.

Não demorou e a moça chegou com mais dois rapazes da mesma idade que ela. Sentaram na mesa ao lado da minha. Falavam alto, animados. Alguma coisa sobre o fim do semestre, essas coisas que consomem a vida dos estudantes.

Pedi a saideira. Ela sentiu urgência e puxou assunto:

— Ei, cara! É, você. Só tem você aí, né?—disse, provocando. Tem cigarro?

Eu tinha. Cigarro é uma senha, eu sabia bem. É um troço, hoje, quase primitivo, feito mijar na rua ou caçar com arco e flecha. Não combina com a geração saúde.

Estiquei a mão e lhe passei a carteira.

—Pode ficar, eu disse. Estou de saída. No caminho compro outra.

— Você mora por aqui?, ela quis saber.

Aquilo tudo não me cheirava bem. Não sei como, mas algo me dizia que, para ela, não se tratava  de uma simples aventura, um flerte com um “cara” mais velho, tampouco era apenas o álcool falando. Tinha mais.Tinha caldo no angu.

Segui meu instinto. Não dei resposta e pedi a conta. Outro dia eu faço, pensei. Hoje não.

E o garçom demorando…

Desgraçado! Queria ver o circo pegar fogo. Sei que o que salva a vida do garçom é a ação, a fofoca, a maledicência. Sem isso, não suportariam uma semana no trabalho.

— Vem cá, acho que te conheço de algum lugar, ela disse.

— Acho difícil, sou novo na cidade.

— Não era você outro dia no mercantil X, com um carrinho só de cervejas? Era você, sim!

Desgraçada! Ela realmente me vira. Ela me pegou no flagra. Presumiu meu estilo de vida. Não precisava ser muito inteligente para sacar que eu era um tiozão, provavelmente morava só, entre trapos e garrafas vazias. Era isso, mas tinha mais.

O garçom acena que já vem. Os rapazes pretextam qualquer coisa e saem. Ela pergunta se pode sentar-se comigo. Não respondo novamente. Ela vem.

— Vou ser direto com você, eu disse. Sei que você estava olhando para mim. Sei que você queria sentar-se aqui desde que me viu. Mas não estou no mercado amoroso, eu ratifiquei.

— E em que mercado você está,meu bem? — ela disse, dando uma risadinha irônica.

Já estava para gritar pelo garçom quando um homem grisalho, com um bigode inconfundível, sentou-se na primeira mesa. O garçom foi rápido em atender:  serviu-lhe uma dose de uísque e uma água de côco, como se já o conhecesse. Só podia ser o proprietário do bar. Sim, era ele.

Desgraça!

A moça notou que alguma coisa mudara em mim. Eu sabia que ela sabia. Ou, por outra: eu sabia que ela desconfiava que havia algo em mim.

Respirei fundo. É preciso ser profissional. Voltei os olhos para a moça. Ela usava óculos ray ban, ar de intelectual. Fui descendo os olhos. Notei que ela estava com as pernas cruzadas. Tinha um corpo esbelto, coxas torneadas, tudo natural. Seios à vista, duros, redondos.

Dois raios caindo no mesmo lugar, eu pensei. Mas precisava escolher um. Embora não me saísse da cabeça uma previsão sinistra : um desses raios vai rarear no futuro. Tudo nessa vida é substituível, já dizia minha santa mãe.

Senti uma angústia no peito. Não era minha primeira vez, mas parecia.

O garçom piscou o olho para mim do balcão. Infeliz! Ele deve ter olhado para minha cara uma dezena de vezes. Talvez desejando ser ele ali, com uma mulher daquelas, nova,toda solícita, querendo doces e aventuras. Uma tentação.

Talvez o infeliz projetou -se na minha situação. Não sei, nunca saberei. Sabia três coisas: havia o garçom, a moça e agora o homem de bigode na primeira mesa. Justamente naquela hora, ao mesmo compasso do relógio. Tinha de escolher. Diacho ! Mas é preciso ser profissional.

Analisei friamente a situação. Fiz menção de ir ao banheiro. Dei a volta. Fiquei de frente ao homem de bigode. Saquei o revólver e dei dois tiros no peito dele, conforme o solicitado.

Em fração de segundos, acertei o garçom, que estava entretido flertando com a balconista. Ele havia gravado bem o meu rosto, o infeliz. Fiquei sem opção.

Não olhei mais para a moça. Pulei na minha moto e cantei pneu. Não sei, até hoje, por que a poupei.  Era uma testemunha e, pior ainda, uma testemunha universitária. Poderia me apontar facilmente. E seria precisa, crível.  Traçaria bem o meu perfil.

A noite estava muito bonita mesmo. Ameaçava chover. Uma pena. Poderia ter conhecido melhor a moça, quem sabe ter dormido com ela. Poderia tê-la deixado em casa na chuva ( choveu até o amanhecer).

Ela abraçada à minha jaqueta de couro, com suas coxas grossas roçando nas minhas… imaginando  se eu ligaria depois, se nos veríamos novamente ou se seria apenas uma noite. Cena de filme.

Lembrando agora, ela era muito bonita mesmo. Mas o que não  me abandona é a demora do garçom em trazer a conta. Nunca se sabe. É preciso ser profissional.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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