Quarentena

04/04/2020

Havia semanas que não saiam de casa por precaução. O pandemônio estava à solta. Isso era o que a mulher, funcionária pública, pensava do governo, e não do novo vírus. Estava sentada no sofá lendo as últimas notícias sobre as implicações no cenário da saúde, economia etc. Largou o celular. Suspirou. Dirigiu-se ao marido:

– Faz semanas que não malho. Nem tenho coragem de olhar para a balança.

– Você está ótima, meu bem, disse o marido com um olhar de criança condescendente.

Olharam um para o outro demoradamente. A mulher notou que o marido comia macarrão com as mãos, o que a enojava. Deitado na rede, o homem exibia uma barriga pornográfica, que usava como suporte para pôr o prato. Ela lembrou-se de como ele havia sido garboso.

Não muito tempo atrás, era corpulento, tesudo, atlético, pensou. Gostava de ouvir das amigas: “Teu marido é um partidão”, “Lembra o George Clooney”. Esses comentários deixavam-na envaidecida. Envolveu-se numa névoa de lembranças…

Mas o marido também tinha pensamentos. O convívio ininterrupto com a mulher realçava certos traços que, mesmo antes percebidos, ganhavam novos contornos. Atentava mais para as linhas de expressão no rosto dela, os famigerados pés-de-galinha; as pernas estavam um tanto quanto flácidas, mesmo com todo o dinheiro gasto na academia. Pela primeira vez reparou nos pés dela, propriamente. Achou-os desproporcionais, feios.

O tédio fazia com que pensasse também em certas ideias que antes fazia do casamento.

“Alguém para dividir o fardo da vida”. Esse pensamento outrora gerava uma sensação de alívio, como se lhe fizessem uma cócega no peito. Mas agora finalmente entendia a ideia de jugo desigual: há pessoas que possuem fardos maiores que os nossos, impossível de serem carregados até por quatro seres humanos. E temos de dar conta de todo um conjunto de vícios pregressos. Achava esse fardo opressivo. “Não senhor, não sou obrigado!” Agora olhava-a com uma fúria adormecida.

A mulher, por seu turno, via-se como empregada do marido agora – havia dispensado a doméstica por causa de uma gripe mal curada desta. “Passei anos resistindo à ideia de mamãe: de que o homem procura na mulher uma empregada vitalícia. Dizia nas fuças dela que comigo não ia ser assim nem a pau. Agora tenho de fazer a comida, lavar as roupas, aturar os filhos”, pensava ela com seus botões.

A casa deles – que havia sido judiciosamente escolhida por ela, por ter um quê de liberdade, com suas árvores frondosas, espaço amplo para convidados – parecia agora uma prisão; uma prisão em que os carcereiros a chamavam de “mamãe isso, mamãe aquilo; “mulher isso, mulher aquilo”. Meu nome não é mamãe! Não é nem mulher! Agora olhava o marido com um ódio mordaz. Ele também estava com os olhos fitos nela.

– O que você tem? Isso tudo vai passar e logo logo teremos saudade deste tédio, saca? Disse o marido, tentando ser jovial.

– Se você não calar a boca, eu vou sacar é uma arma!

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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