Quem paga o coveiro?

04/09/2021

Melhor do que pedir desculpas é dizer: finalmente eu agora entendo. Pois o esforço de compreender está muito além da vontade de receber perdão. Os túmulos ganhariam mais com cochichos sinceros de entendimento do que com flores, orações, lápides, ornamentos, mármores. Isso era o que, no fundo, pensava Joaquim.

Mas beirando os cinquenta anos, analfabeto de pai e mãe e cético de nascimento, tal pensamento se traduzia da seguinte forma: “A gente só presta depois que morre”. Joaquim era filho de um ex-dono de funerária, já reunido com seus clientes.

A mortuária fechou no início dos anos noventa. O confisco das poupanças, sob a égide de Collor, aumentara e muito os suicídios. As famílias mais tradicionais davam um jeito de enterrar o morto sem o vexame da exposição. E a dispensa, no caso dos que morriam por tristeza, era mais importante que a despedida.

O pai dele também viu seu pé-de-meia ser levado. O negócio da morte, sempre certo, começou a achar outros trâmites. Morreu de infarto poucos meses depois.

À época, Joaquim já era homem o suficiente para saber que a nossa vida é, em grande parte, governada pelas decisões de terceiros. Lembrava do pai lendo um depoimento de um homem confiscado:

“Como eu me sinto? Como um réu que foi julgado e condenado por si mesmo. Votei no homem e ele me condenou a passar fome”, dizia.

Mas não era tão ruim. Foi por um terceiro que arranjou o trabalho de coveiro: um velho conhecido de guerra do pai. Mesmo fazendo um trabalho canino, ao contrário dos coveiros preguiçosos e cachaceiros, nada o comovia.

Não se admirava nem quando as enlutadas eram moças de seus vinte e vinte três anos que, aos berros, falavam ante o caixão do irmão mais velho, que ainda era novo:

“Se você ama alguém, diga isso enquanto essa pessoa estiver viva, pois depois pode ser tarde demais. Como eu te amo, meu irmãozinho!”. Joaquim mastigava seu fumo puído e resmungava “Choro de crocodilo”.

Ele conhecia as famílias. Aquela ali era dividida pela herança do pai, um velho empresário da madeira. “A herança é o que os mortos deixam para que os vivos se matem”.

Joaquim costumava lançar essas pérolas aos cães, que eram seus únicos amigos inarredáveis. E eram muitos. Não falava com os mortos, pois era supersticioso.

Gostava especialmente dos velórios com viúvas jovens e belas. Na cabeça dele era assim: com um olho elas choravam o morto, e com o outro piscavam para a vida; antigos amores renunciados pelo casamento… amores em espera… um amigo do morto que queria ser mais chegado à viúva…

Ele ria sarcasticamente e piscava para os cães. “Não dou um ano para esse luto virar festa”. Só mostrava algum sinal de respeito para uma mulher de seus cinquenta e tantos anos. Às sextas, religiosamente, ela visitava o túmulo de uma amiga. Levava sempre uma garrafa de vinho e brindava ao pé da morta. Em poucos meses ele entendeu que se travava não só de uma amiga, mas de um amor proibido à época em que se conheceram. Um amor tão humilhado que levou uma das amantes na flor da idade. De quando em quando ele meneava à cabeça em sinal de pêsames.

Veio a peste. E com ela sobreveio no coveiro uma depressão miúda. No fundo, ele gostava do espetáculo humano. Agora os mortos partiam sem ao menos isso. Não era justo, pensava. Isolamento? Ele sempre esteve em isolamento. Máscara, e daí? A máscara ajudava a disfarçar os feios e banguelas, que era o caso dele. Mas velório sem gente? Morto sem despedida? Era aterrador.

Seu trabalho multiplicava-se. Estava na lista das atividades essenciais. Agora era ainda mais fundamental que ele vivesse. Mas viver para quê? Qual a remuneração disso?

“Bom, e se eu morrer aqui, no trabalho? Ao menos vou poupar o município de mais gastos. É, vão precisar chamar alguém para me enterrar. Morro e passo a enxada para o próximo. Nada mal”.

Havia um filho perdido no mundo.

“Mas ele nem sabe quem eu sou. E mesmo que ele soubesse, iria gastar com passagem e hospedagem só para enterrar um pai coveiro?”

Quem iria pagar? Será que o filho entenderia sua ausência? Agacharia sobre a cova suja e diria:

“Finalmente eu agora entendo?”

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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