Um certo professor Jurandir

29/05/2021

A história envolvendo o professor Jurandir já foi tão contada e recontada que acabou virando lenda urbana. Não se sabe mais se este era seu nome, se realmente fez o que fez, se foi no rio Jaguaribe e não na lagoa da Bastiana…

Mas foi uma história que nunca envelheceu mal. Como bem mostra a reportagem recente sobre os cem anos de dona Eliane, antiga diretora da escola que afirma, dentre outras anedotas, o fato de Jurandir não só ter existido como também que foi seu funcionário. E mais: a cena que o mestre protagonizou teve uma razão inquestionável: uma certa aula…

Tudo teria começado por causa de um filho de Guassussê. César, mais conhecido por Cesinha, era filho de um homem notório pelos exageros. O pai do menino afirmava que já havia lido a bíblia quatorze vezes. E gesticulava com os dedos, fazendo as contas: quatorze. Foi do pai que ele herdara o gosto por falsas polêmicas.

O menino já havia recebido um corretivo exemplar do professor Jurandir, quando um dia perguntou ao mestre a velhíssima questão: “Se Deus pode tudo, ele pode criar uma pedra que ele mesmo não pode levantar?”.

– Sou professor de física, não de teologia, disse o mestre, encerrando o assunto.

César calou, mas não esqueceu. Num desses acasos muito frequentes, o aluno viu o mestre sem ser visto. E pareceu aos seus olhos que havia descoberto um segredo cabeludo: flagrou o mestre entrando num terreiro de umbanda.

No outro dia, começou a confabular com os colegas um modo de fazer disso uma indiscrição imperdoável e constrangedora. “Papai disse que homens vão ao terreiro sabe para quê?! Para receber a pomba-Gira! E sabem o que a pomba-Gira faz um homem fazer?”

-Fala, Cesinha, fala!

O diabo mora mesmo nos diminutivos…

Ao fuxico se assomou o fato de que o professor, já com seus cinquenta anos feitos, não casara e não tivera filhos. A história voou rápido até os ouvidos de Jurandir. Começada a aula, ele foi direto ao assunto:

– O que você estava espalhando a meu respeito, moleque? Desembucha, o gato comeu tua língua?!

O menino tremeu. Olhou para os amigos. Criou coragem: “Sei que o senhor é um macumbeiro e sodomita!” Ele havia aprendido esta última expressão com o pai.

A partir daí começou uma verdadeira aula do insulto nunca vista ou sabida na história da educação:

– Vagabundo! Vagabundo! Energúmeno! Peralta!

– Macumbeiro! So-do-mi-ta! Vou contar tudo para o meu pai!

– Eu bato em você e no seu pai. Vou te mostrar quem é macho. Ligue para ele! Anda, moleque, vai chamar teu pai!

Dona Eliane ouviu o barulho e entrou na sala aturdida com os gritos.

– Tu não é de nada, macumbeiro! Meu pai nem terminou os estudos e anda de Hilux! Tu anda nesse Chevette velho e acha que é melhor que meu pai! Macumbeiro!

O professor Jurandir sugeriu que o menino fizesse uma coisa anatomicamente impossível com o carro. Chegaram outros funcionários pacificadores; tiraram Cesinha da sala. O professor Jurandir tentou se acalmar.

Dona Eliane pediu por tudo que era mais sagrado que ele fosse para casa acalmar o juízo e só voltasse na semana seguinte. Tudo já estaria resolvido.

Com este relato, que creio ser verossímil, agora temos um pano de fundo para o ato. Não sei se isso o engrandece ou apequena. Deixo o julgamento para Deus e para os leitores.

Na cadeira do carona estava a pilha de provas de física. Ele deve ter olhado para as águas e pensado alguma coisa. Vemos o seu olhar cabisbaixo. Podemos sentir seu fracasso, tão irmão do nosso. Mas não sei se alguém dentre nós jogaria todas as provas na água como ele o fez. Sem dúvidas foi um ato controverso; contudo, todos nós já desejamos jogar tudo nas profundezas.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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