Um ilustre desconhecido

08/10/2022

Se meu pai foi um melancólico, como me disseram muitos anos após sua morte, não posso afirmar. Creio que em algum momento de sua vida ele decidiu não passar mais seu gene espiritual, por assim dizer. Digo isso porque lembro-me de que ele era muito aberto para comigo em criança. Contava suas travessuras, suas vergonhas, coisas de que se orgulhava etc. Mas à medida em que fui crescendo, ele se tornou fechado, impenetrável.

Fizesse chuva ou sol, ele ficava até tarde em sua biblioteca jogando xadrez, completamente só. Aprendera noções de russo e francês só para entender os livros de seus mestres.

Contam-me que ele era imbatível no jogo. Dizem também que era bruto “igual canto de cerca”. Às vezes, quando fazia uma jogada mal calculada, batia no tabuleiro de modo a mover todas as peças. Ninguém ousava reclamar, pois sabia-se que a isto surgiria uma ira de proporções bíblicas.

Cheguei a ir com ele ao local do jogo. Ficava no fundo de um sebo antigo. Os frequentadores do sebo estavam mais interessados nas peças de madeira do que nos reis, rainhas, poetas e filósofos que pairavam sobre as velhas prateleiras, reais ou inventados.

Na minha presença ele se segurava. Em verdade, quando estava comigo, agia feito o estivador de braços musculosos que, ao chegar em casa, suprime toda a força empenhada no trabalho para abraçar suas crias. Meu pai lembra muito o pai do Menino de engenho, de José Lins: havia fúria e loucura nele, mas igualmente um afeto desmedido.

Até meus dez anos ele usava uma linguagem infantil para comigo. Minha mãe ficava brava – sobretudo quando ele usava os diminutivos. Ela dizia “Ensine o menino a ser homem”. Minha mãe também não conhecia meu pai. Creio que ele sabia, como hoje sei, que se permitisse que alguém o conhecesse de verdade, seria ainda mais odiado. Sim, embora fosse admirado por muitos, também tinha seus rivais, no jogo e na vida.

E foi num desses episódios de oposição que, pela primeira vez, presenciei seu acesso de fúria. Certo dia ele chegou injuriado da burocracia do trabalho – era servidor público. Não recordo do que se tratava, mas jamais me esquecerei de suas palavras, pois foram reveladoras: “Eles querem que eu me destrua. Mas não vou fazer o que eles querem. Eu é que vou destruir todos eles”.

Podem pensar que foi coisa de criança, mas por “todos” eu entendi todos mesmo, exceto eu. Só muitos e muitos anos depois entendi essa lição – uma lição indireta, aliás. Porque meu pai num me passou nem um código moral: ele apenas me deixou livre para ser.

Seu “Valdemar”, como era chamado pelos que não o conheciam, viveu uma vida solitária, mesmo estando em família. Mas sua suposta tristeza incurável, esta da qual hoje o acusam, não era convencional, como nada na vida desse homem foi. Se era tristeza o que sentia, ele a transformou em outra coisa que não consigo precisar.

Quis minha mãe que sua lápide fosse simples. Como se sua vida pudesse ser encerrada em poucas frases. Consta na lápide seu nome, Francisco Valdemar Belarmino, e os predicativos que ele deu a conhecer.

Eu não me opus. Talvez ele preferisse assim, se pudesse opinar. Só assim ele permanece oculto, longe do discernimento verdadeiro de quem foi, e salvo do ódio de muitos. Sim, porque até os mortos, e nossa história recente é a prova disto, também podem ser revirados e odiados.

Sim, porque ele realmente destruiu a todos. E o fez exatamente como ele mesmo intuiu: não se destruindo a si mesmo.

Meu pai morreu em seu tempo, em meio aos seus livros, suas peças de xadrez, feitas sob encomenda; tomando seu café, indiferente à paisagem, às mudanças dos tempos, à limitação do corpo. Indiferente a todos os cultos, fumando seu cigarro sem agitação. Hoje, vez por outra, me chamam pelo nome dele, sem sequer saberem quem de fato ele foi.

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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