Um vendedor de cadáveres

25/03/2023

Um antigo professor meu dizia, muitos anos antes da invenção das redes sociais, que ter acesso a certo tipo de pessoa pode alterar nossa vida para sempre.

Embora ele fosse do campo das chamadas “ciências exatas”, vez por outra fazia digressões psicológicas em sala.

Ele denominava essa atividade extracurricular de “sessões mediúnicas previamente estabelecidas”. E foi numa dessas suas expedições pelo mundo dos espíritos que ele nos contou uma história.

Estávamos em fins de dezembro, já animados com as férias. Era só mais uma dessas aulas para preencher o cronograma letivo. Havíamos terminado os últimos exames e o livro didático era findo.

Nessas últimas semanas eu percebera que os professores costumam ficar mais flexíveis e relaxados; e chegam (creio que isto não mudou) até a conversar com os alunos sobre suas vidas privadas.

Pois bem. Justo na aula deste professor, que atendia por Técio, um aluno fez a famosa pergunta acerca das profissões. Numa palavra: como e por que Técio decidira ser professor. A resposta foi um tanto insólita.

“Não decidi, disse ele. Acredito que na vida só decidimos uma coisa”.

Todos nós ficamos como que tomados pela curiosidade e sabíamos que ele nos contaria uma história.

Era seu modo de dizer sem dizer. Nos dias de hoje, seria algo como “Vou tentar falar sem ferir os direitos humanos, pois não sou bobo nem nada”.

“Aconteceu o seguinte”, principiou ele. “Certa feita conheci um vendedor de cadáveres. Essa profissão deixou de existir há muito, muito tempo.

Numa manhã qualquer ele bateu em nossa porta. Minha mãe não estava. Meu pai havia saído para trabalhar dez anos antes e ainda não voltara. Achei até que fosse ele, pelo horário.

Ao ver que não tinha ninguém exceto eu, ele resolveu sentar debaixo da latada [era uma espécie de jardim, etc.] de plantas de nossa casa a fim de descansar. Eu perguntei o que ele vendia e, para meu espanto, ele respondeu, naturalmente:

“Vendo cadáveres”.

Fiquei com os olhos graúdos, igualzinho ao de vocês agora”, atalhou o professor, rindo de todos nós. E claro, com muito tato, fez a piada – “Se tivesse acontecido com um de vocês, o psicólogo agradeceria ao tal homem”.

Antes que a gente processasse a piada, o professor continuou:

“Ele tinha uma mala imensa. E eu realmente acreditei que poderia haver um cadáver humano ali dentro.

Tentando, talvez, me assustar ainda mais, ele abriu lentamente o zíper, parando por alguns segundos antes do final.  Foi então que espiei e vi uma pilha de livros de várias cores, em capas duras. Eram enciclopédias.

Ufa! Passado o susto, eu disse a ele que não tinha achado a menor graça. E inventei que não tinha medo de cadáver algum. Foi aí que ele disse algo que nunca mais me esqueceu.

Ele sorriu e limitou -se a me dizer:

“Pois você deveria ter medo destes aqui”.

Estava pronto a crivar o homem de muitas perguntas quando minha mãe apareceu.

Vendo que ela não tinha qualquer interesse nas enciclopédias, o homem levantou-se com muito esforço, para ver o que tinha acontecido com a gente.

Endireitou a mala, e desceu pala imensa ladeira da nossa rua. Quis acompanhá-lo até a esquina, mas minha mãe não me permitiu. Seguiu-se a isso um sermão sobre não falar com estranhos na ausência dela.

Vocês devem estar se perguntando o que essa história tem a ver com minha profissão. Pois muito bem.

Aquele incidente modificou toda a minha vida porque a partir daquele dia passei a me interessar pelos tais “cadáveres”. E naquele tempo cheguei a pensar mesmo em me tornar também um vendedor de cadáveres.

Descobri onde ficava o cemitério de todos eles, ou seja, na biblioteca pública de nossa cidadezinha. O resto é outra história…

Não me tornei um vendedor de cadáveres, como vocês podem ver, mas tornei-me um leitor deles. E cá estou”.

É claro que isso não saciou por inteiro a nossa curiosidade; queríamos saber quem eram esses tais cadáveres e por que eles eram tão interessantes.

Mas o sinal de fim de aula havia sido tocado vinte minutos antes disso e a cabeça careca do diretor da escola apareceu na porta para ver o que tinha acontecido com a gente.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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