Beatriz

06/05/2023

Delicadamente, ela subia a rua que dava para o mercado. Levava consigo uma sacola amarela nas mãos e os óculos enormes na face. Com fones de ouvido, cantarolava ao ritmo dos seus passos leves e sem pressa – coisa rara não ter pressa nesse mundo de hoje.

Alguns passos a mais ela, por fim, sentou-se no banco de uma praça velha e carcomida. Olhou as horas e para os lados. Checou as mensagens no seu celular e voltou a olhar para os lados – esperava alguém, isso me pareceu óbvio -, como a aguardar a chegada de um ônibus.

Recapitulando: Mulata alta, bonita, perfumada, bem vestida e só… Claro – pensei – não tardaria, um jovem bem aparentado, em questão de segundos, se faria presente àquela velha praça onde a única coisa de valor contida, naquele instante, era tão-somente a bela e apetecível jovem.

Enquanto consertava minha parabólica do alto desse prédio, sem por ela ser notado, deixei cair a minha chave inglesa. Nisso, fui descoberto! Ela me sorriu, ou riu de mim, não sei ao certo. Desci com a finalidade de recuperar a maldita chave inglesa que caíra da minha mão decrepita pelos anos de serviço braçal.

Foi na descida e aproximação que tive a infeliz certeza do arrependimento, pois reconheci a mulher bela e charmosa: Minha ex-mulher! Meu Deus! Como ela estava linda. Nem parecia ter sofrido tanto na vida pela nossa filha falecida, pelos os meus sumiços em terras distantes, com o assassinato do irmão e pai (vítimas de uma emboscada).

Não contive a curiosidade e indelicadeza quando indaguei, estupidamente, sobre a razão de sua localização insólita naquela praça medonha e sem vida verde. A resposta me veio tal qual um bofetão de mulher traída: ”Vim viver, Kelvin, Vim viver!”’

– Mas aqui não há vida, Beatriz. A quem você espera? – Mais uma vez indaguei, como típico idiota que sempre fui e, como podem ver, continuo sendo.

– Preocupe-se com a sua antena. Vai precisar dela, pois é a sua maneira mais próxima de ver uma mulher, ao menos de biquini. Sem internet, sem ‘redtube’, meu querido Kelvin! – ironizou magistralmente (pra eufemizar a crueldade com que aquelas palavras de humor negro penetraram meu coração solitário)

Enquanto ingeria em seco aquelas palavras, uma por uma, veio, repentinamente, uma voz masculina em cumprimento: ”Boa tarde!”

Era um sujeito forte, que nem de longe lembrava o meu corpo cheio de cicatrizes, barrigão de cerveja e fronte sem repouso capilar. Aparentava ser bem mais novo do que eu. Beatriz – aparentando vergonha de mim e embaraço pela situação – sequer apresentou-nos.

Subiram rapidamente em uma moto de alta potência e saíram sorrindo para a vida e, desta vez, tenho certeza, rindo de mim.

Eu também subi…Não em uma moto, mas no prédio… Não quero perder a chance de assistir garotas de biquini. Beatriz estava certa quanto a isto.

Enquanto consertava a antena, na rádio uma música impertinente me dizia: ”Ah! na vida a gente tem que entender, que um nasce pra sofrer enquanto o outro rir…”

– Cala a boca, Tim Maia!!! – gritei para ninguém.

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

MAIS Notícias
Quando a ignorância e o fanatismo recrudescem
Quando a ignorância e o fanatismo recrudescem

  ‘‘A esquerda brasileira — toda ela — é um bando de patifes ambiciosos, amorais, maquiavélicos, mentirosos e absolutamente incapazes de responder por seus atos ante o tribunal de uma consciência que não têm.’’ - Olavo de Carvalho   Que estamos vivendo em...

O reduto dos últimos
O reduto dos últimos

  ‘‘A leitura de todos os bons livros é uma conversação com as mais honestas pessoas dos séculos passados.’’ -  René Descartes Em um mundo idiotizado e idiotizante, poucos são os lugares aos quais possam ser considerados dignos de se fazer presente. A nossa...

A nova era da espiral do silêncio
A nova era da espiral do silêncio

Em uma busca rápida na internet, o amigo leitor encontrará essa expressão, basicamente, na seguinte definição: ‘‘A espiral do silêncio é um conceito desenvolvido pela teórica da comunicação Elisabeth Noelle-Neumann, que se refere ao processo pelo qual as opiniões e...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *