No poético animismo pagão também o amanhecer é identificado como uma divindade. Homero a descreve como uma deusa de dedos róseos, numa clara alusão aos tons do raiar do dia. Os antigos a representavam com vestimentas cor de açafrão, ou de um amarelo pálido, saindo de um palácio de prata dourada, com uma tocha na mão, sobre um carro do mesmo metal espargindo reflexos de fogo.
Em outras representações o carro é puxado pelo cavalo Pégaso e, além da tocha na mão, ela é pintada lançando uma chuva de rosas sobre a terra. A deusa Aurora, belíssima em sua suavidade, também revela um aspecto transgressor, lunar. Seus relacionamentos amorosos são todos efetuados por raptos. Titon, Céfalo e Órion foram roubados de suas esposas pelas perigosas mãos da deusa do amanhecer.
A imagética que acompanha a deusa Aurora é, em grande parte, de fácil percepção exegética. Os dedos rosáceos obviamente evocam os primeiros contornos do céu ao nascer do dia. O facho na mão é a luz do sol que afasta a escuridão noturna. Há certa pompa, certa euforia que traduzem a esperança sempre renovada em cada amanhecer.
Entretanto, todo os mitos têm duae facies, as duas faces. A metade solar é predominante nesta deusa. A metade lunar é mais esquiva. Nesta podemos analisar tal divindade como nefasta aos amantes. A Aurora é o dia que rouba a plenitude noturna dos apaixonados. Neste sentido tal deusa é notoriamente apolínea, inimiga da passio. Os felizes in love rejeitam o sol, o dia. Satisfazem-se com a voluptuosa noite.
Na poesia barroca inglesa do século XVII, Jonh Donne (1573-1631), um dos seus luminares, assim se refere ao dia nascente que há de separar os amantes: And now good-morrow to our waking soules\ Which what note one another out of feare. (E agora bom dia às nossas almas que despertam; que não conseguem olhar-se devido ao medo.)
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