DEVANEIOS MITOLÓGICOS V HERO E LEANDRO

18/03/2023

Segundo os poetas e mitógrafos da Antiguidade, havia no jardim de Vênus duas fontes sempre a jorrar. Uma contendo águas claras e doces; a outra, águas turvas e amargas. Notória alusão ao jogo complementar entre Passio et Dolor que o amor invariavelmente traz.

Um dos mitos que mais ilustram tal comentário é o de Hero e Leandro. Foi tema de um famoso poema do poeta alexandrino Museu; foi recontado por Ovídio nas Metamorfoses e nas Heroides; serviu (assim como o mito de Píramo e Tisbe) de inspiração para Shakespeare para a escrita de Romeo and Juliet.

Resumamos a fábula do mito. Hero era uma bela jovem sacerdotisa de Vênus. Morava em Sestos, à margem do mar Heleosponto. Leandro morava em Abidos, na margem oposta do mesmo mar. As cidades eram inimigas. Em uma ocasião, Leandro, disfarçado, foi a uma festa para a deusa do amor em Sestos. Lá conheceu Hero e apaixonaram-se. Mas o amor era proibido, devido ao ódio entre as cidades. Todavia, a vis passionis sempre encontra os seus meios. Hero acendia uma tocha em um alto farol na praia e guiava todas as noites o nadador Leandro que enfrentava as ondas do Heleosponto para ver a amada. Ao amanhecer o jovem retornava à sua cidade na outra margem. Em certa noite, porém, houve uma tempestade. Mas Leandro, movido pela temerária paixão, fez-se ao mar. Esperava que a luz da tocha o guiasse naquela terrível procela. Deu-se o começo da tragédia. A chuva apagou a tocha e o jovem, perdido, afogou-se. O cadáver chegou à praia, aos pés da torre onde Hero, impaciente, aguardava o amante. Quando ela o viu, desesperada, matou-se atirando-se da torre.

A intensa passio entre os amantes foi a hybris que os perdeu. Os deuses têm inveja da plenitude atingida pelos mortais; Hero e Leandro romperam o métron, o que os levou à ruina. Analisando os sentidos metafóricos percebemos claramente o simbolismo da aqua como ícone de destruição e de dádiva. Assim também o ignis (fogo), evidente metáfora da passio, leva os apaixonados tanto à laetitia (felicidade), como à mors.

O mito em questão foi um dos mais inspiradores para a construção do conceito do amor romântico. Sobretudo o corolário final, a redemptio mortis, a redenção da morte, revelou-se arquetípica. Lorde Byron, verbi gratia, de resto também notório nadador, atravessou certa vez o Heleosponto em honra ao casal mitológico.

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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