Ilha dos náufragos

26/11/2022

Primeiro veio o desentendimento do primeiro dia; depois… não sei: apenas desmaiei e assim permaneci por três longos dias. Ao acordar, parecia ter passado anos. Uma voz dentro de mim dizia que os tempos de escuridão voltaram com lampejos de lembranças a atormentar a ilha onde quatro barcos, à sua margem, naufragaram.

Cordas soltas e emaranhadas estavam espalhadas por toda parte por onde eu olhasse – e a vista corria longe. Fumaças misturavam-se às águas a cair, fazendo mais tímida as poucas fagulhas que, como uma dançarina, baloiçavam, dançando de um a outro lado, sem sair do lugar.

E do primeiro barco, dos seus escombros, apareceu um garoto de cabelos e olhos castanhos. O único sobrevivente pedia água e pão para saciar sua sede e fome. Do segundo barco surgiu outro garoto. Este, por sua vez, nada convencional pediu, exceto música para alegrar sua vida. Do terceiro barco, uma mulher. Após pôr o primeiro pé no solo firme, pôs o segundo já em passo de dança, e assim pôs-se a dançar em meio à neblina que logo viraria temporal. A essa altura, as fagulhas, tímidas pela concorrência dançante, trataram de extinguir-se, apagando-se como velas suicidas.

Do quarto barco ninguém emergiu. Fora afogada por sua própria displicência. Fora ferida de morte pela própria ganância. Era uma bela mulher, é verdade… mas a sua beleza não bastou para que o fundo do mar a tragasse impiedosamente.

O vento a essa altura tratou de ecoar seu nome por entre meus tímpanos, dizendo-me para procurar abrigo, pois a dançarina e os dois jovens necessitavam de auxílio. No entanto, hoje me recuso a fazer qualquer coisa por quem quer que seja. Que o sereno lhes ensine a entender que a vida é pior que a morte. Que os que se foram estejam no além, como eu, pior a cada dia.

Vislumbro, num barco velho, a saída quase impossível, onde me sento e depois deito… e vou nele, derivando à nau, sem destino algum, com salpicos de chuva – agora mais fortes – na face. Enquanto me afasto da minha ilha, vejo só fumaça, neblina e almas que jamais me abandonarão. E que ilha é essa? Na realidade, são várias. São os livros.

Os mesmos livros espalhados na velhice de um homem. Todos eles contam histórias que, se nunca aconteceram, deveriam. Ou, se aconteceram, que não tivessem chegado ao fim. Um homem e seus livros são como que o mesmo ser: um complementa o outro. É como se, após o nascimento buscássemos, o “nós” perdido. Como se, atávico, incompleto o homem fosse.

A busca infinda continua em cada encontro diverso consigo e com o mundo pelo livro ofertado. São tragédias em vida… tragédias em meio a glória.

Enquanto o mundo se fecha, leio. Enquanto o mundo desaba lá fora, leio. E a vida, ainda sim, por meio da leitura, não melhora; não garante a mínima vantagem em relação aos que não leem. Nunca cometi o ledo engano de pensar que leitores são mais felizes.

Na verdade, é provável que a felicidade consista na simplicidade e não na complexidade encontrada nos livros e na vida, onde tudo nos parece tão entediante e sem sentido.  Mas é preciso ler sobre como vamos morrer, ou do que podemos morrer. É preciso ler sobre as infinitas formas de amor que levam à degradação humana, mesmo que durante o percalço promova tímidos gozos efêmeros.

É preciso ler crenças e descrenças. Ler a maravilha das vidas que, por não serem a nossa, é bela. É preciso ler partes de nós escritas por quem não nos conheceu. É preciso ler para sentir-se menos útil, pois só os tolos se amam o suficiente para se reconhecerem como amáveis. Ler é um trabalho solitário. E a solidão é sorte… o azar é morrer dela.

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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