Medievalismo em Portugal I

20/11/2021

Além da vida

 

Nada pode ser mais redentor do que encontrar-se, depois dos labores desta vida, com o Criador na Glória divina. Todavia, a literatura em sua soberana potestas, pode conceber estranhas e blasfemas ideias.

No período Vitoriano da Literatura Inglesa, verbi gratia, dois autores propuseram a bizarra possibilidade de negar o Paraíso em favor de um amor terreno. Seria concebível, leitor, um amor que preferisse a mortal existência junto do ser amado à Plenitude Celeste?

Emily Bronte, no romance ultrarromântico Wuthering Heigths, apresenta-nos o casal Heatcliff e Catherine recusando a remissão de Deus e ambulando pela terra, juntos, como espectros amorosos. Contemporâneo da autora, o poeta pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti, na comovente balada The Blessed Damozel, escreve sobre uma jovem e bela amante que, morta antes do amado, entedia-se no Paraíso sonhando com os prazeres terrenos. Ousados, pecaminosos pensamentos!

Mas o nosso amado Portugal, nossa verdadeira pátria, que nos deu a Fé e a Língua, não esteve isento de tais heresias. No Cancioneiro Geral (1516) há um poema com as mesmas sombrias reflexões. Trata-se de uma longa balada, relatando um sonho algo dantesco, de Diogo Brandão (C.G. III, pag 44-49). O poeta, já escrevendo num português quase sem galego, fala-nos sobre um amor para além da vida. Ele é advertido no sonho sobre as penas infernais, mas prefere continuar na perdição de Cupido. O amor terreno, eivado de pecado, é trocado pelo eterno e pleno Amor Dei. Quem ousaria?

A certa altura da composição confessa o poeta: Assy me vejo perdido/ mays agora , y namorado. Logo depois, recusando a Salvação, afirma: Assy eu triste nam posso/ com myl males desses taes/ deyxar nûca de ser vosso/ em que sejam muytos mays. Finalmente reitera sua aeterna perditio amoris: Sam perdydo neste mûdo / y no q vy condenado.

Oremos, piedoso leitor, por este poeta. Sabemos que não existe a asneira teórica do eu lírico. O poeta é o homem. Se amou assim, pecou gravemente. Eum Deus igonoscat

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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