O condenado

03/12/2022

No prédio ao lado, podia-se ouvir vozes sem que se pudesse, com isso, entender sobre o que falavam e sobre quais palavras utilizavam para tanto. O condenado presume que os colóquios seriam sobre a sua sentença. No prédio de parede mofada pela chuva, o homem sem sorte nada podia fazer que não esperar pela sua hora. Despedir-se do mundo – já que não havia de quem se despedir – era a sua única e final obrigação. Sem mulher, filhos ou parentes distantes, o homem assassino entretinha-se em fugas morosas lendo dias e noites adentro.  Leu como nunca antes em toda sua vida.

Arrependera-se, com essa experiência, de não ter atentado para este hábito salutar. Viu-se em diferentes formas de vida e épocas em cada uma das personagens das literaturas portuguesa, russa e francesa. Os livros lhes eram entregues pelo senhor da padaria, que o ‘‘estimava’’ por pura ação humana (egoísmo envolto em interesse), pensando em receber alguma recompensa na vida futura do pós-morte. Na verdade, mandava que alguém os entregasse. Não lhe convinha manter relações amistosas com um parricida.

As conversas vindas do prédio ao lado cessam. Ouvia-se, daí em diante, apenas o silêncio felino da madrugada. Silêncio quebrado apenas por gatos remexendo os latões de lixos, e cachorros impedindo, aos latidos, que os felinos fizessem suas refeições soturnas. Um carro que passa… Prostitutas e bêbados discutindo valores e cantando… Enfim… É a vida boêmia dos homens e dos animais, que pode ser vista pela diminuta janela da cela do prédio de parede mofada.

O condenado deixa cair um pensamento nostálgico e furtivo de sua saudade da liberdade através de uma fina e cristalina lágrima. Os olhos marejados são recompostos pelas mãos assassinas. Os dedos cortados pelo vidro no dia da contenda seguram um lápis utilizado para grifar trechos importantes do livro – que também carregava em uma das mãos. Saiu da janela e foi acomodar-se no incômodo leito de alvenaria. O ambiente era pouco iluminado. Guardou o livro e pesou os olhos.

Sonhou. No sonho, folhas pareciam dançar no ritmo da música a tocar na vitrola; um relâmpago iluminava os corpos dele e da sua amada; um romper de trovões ecoou no mundo a ira da natureza de Deus. Ao chão, caíram… e a vida se refez bela em meio a lama da chuva, entre espumas na calha.

O dia amanheceu chuvoso e triste. Era o primeiro dia da sua morte e o último de sua vida. Pediu ovos e cigarros no café da manhã. Abraçou seus livros e pediu perdão à sua mãe em oração – coisa que não fazia desde a juventude era orar. ‘‘Obrigado, escritores amigos. Obrigado, tempos atrás das grades. Hoje sou um homem melhor graças a vocês. ’’ – disse em voz alta, mas sem pretensão de ser ouvido pelos militares que o aguardavam à porta da cela. Chorou e pediu para ser enterrado com os portugueses, russos e franceses…

Hoje, já passados alguns anos, penso que deveria chover como naquele dia. Hoje eu também, como o condenado, deveria existir como naquele dia… Como naquele dia em que fugimos da ética e canalhas fomos. Como no dia em que chorei por ela chorar. sorri por ela sorrir. Numa caixa, te guardei para sempre, eu sinto…sinto muito…

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

 

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