O livro do filho – parte I

01/03/2025

Foi durante a dolorosa faxina no quarto do filho – já falecido -, que fora encontrado um livro sem nome na capa. Curioso, o agora solitário homem, que também era viúvo, encontrou, estranhamente, apenas páginas em branco – cerca de cem. No entanto, no meio do livro, havia algumas folhas escritas. A caligrafia lhe era familiar. Pertencia a seu filho.

Antes de lê-las, o pai, ainda pensando sobre o livro que só continha páginas brancas, ficou conjecturando os porquês de o livro não possui sequer uma palavra escrita. Não chegando a nenhuma conclusão plausível, desistiu de tal intento, voltando o olhar pesado para as cartinhas do seu amado filho.

Pensou melhor. Não as leria; ao menos não agora. O coração do velho ainda se encontrava demasiado dolorido pela perda. Ler as cartas traria à tona toda a dor que sofrera no mês passado, principalmente no dia dezesseis, dia da morte do jovem. Só em adentrar ao quarto, pela primeira vez desde a partida do filho, e mexer nos pertences do seu menino, a alma doía, que dirá ver algo que ele escrevera com a sua própria mãozinha destra.

Desfazer-se do quarto do filho, com o intuito de fugir do que era e não é mais, já é um duro golpe para o velho. Apesar da dor, ele sentia que era preciso livrar-se daquele quarto ‘‘vazio de filho’’, sem serventia. O aposento tornou-se um receptáculo para a dor, a solidão e a saudade. Os quadros na parede, os pôsteres das bandas prediletas, o violão no recanto do quarto, os livros, as roupas, a cama, ainda com o cheiro do seu único filho… Era a materialização da dor; era como se a dor fosse, de fato, palpável… Aliás, ela, a saudade, o apalpava no peito, mas com uma força destruidora…

Os olhos marejados do senhor, aqui, mirando o céu pela janela do quarto do filho morto, rogou a Deus que tirasse de si tanta dor. Ou, melhor: que o levasse para junto do seu filho! Que o Senhor olhasse por ele. O velho orava e explicava que, por mais magnifica que fosse a sua vida até ali, agora já não mais havia razão para sorrir novamente, nem condições, mesmo que quisesse.

Neste instante, um pássaro pousa na janela. O senhorzinho, de tão compenetrado, não o enxergou logo. Só alguns minutos depois. O pássaro o fitava de um modo quase humano. De sua asa esquerda uma pena cai. Ele escuta uma voz dentro de si, audível e clara, dizendo: ‘‘Meu filho amado, acalmarei o vosso coração. Escreva, com essa pena, que é produto da minha criação, o pássaro, no livro do seu filho, que também é minha criação!’’

Neste instante, com o levantar voo da ave, assim amainou a dor do velho, como se o bicho emplumado tivesse carregado o fardo da dor consigo. O senhorzinho ajoelhou-se e, chorando bastante, com a pena na mão esquerda, começou a orar e entoar hinos em voz alta ao Senhor. Quanto mais orava e cantava, mais adormecia o horror do luto.

A experiencia do homem, que há muito abandonara a intimidade com o Pai, renovou a sua aliança com Deus. Sentiu, nisso, vontade de viver e fazer valer o sopro da vida. Para honrar a Deus e ao filho, assim o faria. Sentiu no coração que tinha de começar a escrever na manhã seguinte. Considerou que essa decisão sobre o momento da escrita não partiu dele, mas do Criador. Fechou a porta do quarto, mas não sem antes agradecer a Deus e pedir que o filho d’Ele interceda pelo seu.  Pela primeira vez, desde que o filho morreu, o velho teve uma noite de sono e descanso profundo.

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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