O teatro

07/04/2019

Em 1974, voltando de Cuiabá, onde exercera profissionalmente o jornalismo, aos 18 anos, decido morar em Campina Grande. A cidade é um centro de referência no Nordeste em termos culturais. Na literatura, na música, no teatro, é considerável o que se faz aqui.

Eu iniciava o último ano do segundo grau, como se chamava o ensino médio naquela época. Matriculei-me no Epuc (Estudos Pré-Universitários Campinenses), onde, sob a direção da respeitada diretora teatral Lourdes Capozzolli, o grupo Os Dionisíacos iniciava as discussões do texto O Palácio das ilusões de uma negra, peça de Adrienne Kennedy e do beatle John Lennon. A história gira em torno dos dramas psicológicos da jovem Sarah, uma menina atormentada pelo preconceito e pela inexistência de um referencial negro na sociedade em que vive. Drama psicológico, tecido a partir da arguta percepção da autora norte-americana, um texto cru, perturbador e extremamente poético.

Convidaram-me para fazer o Cristo Negro, além de Patrice Lumumba, um dos personagens centrais da peça. O convite, embora me parecesse um reconhecimento da minha atuação noutro espetáculo de que participara ao chegar a Campina Grande, causava-me estranheza, hoje um misto de vergonha e indignação. Numa peça que tinha como tema o problema do racismo e suas terríveis implicações na vida dos negros, a exemplo dos conflitos psiquiátricos vividos pela garota Sarah, imaginem um branco, como eu, pintar o corpo de preto para representar Cristo e um líder negro da importância de Patrice Lumumba. O acinte, para surpresa minha, passou despercebido da crítica e, principalmente, dos atores negros paraibanos, que eram muitos.

À época, contudo, não me deixei guiar pelo senso do politicamente correto e aceitei o desafio. Compus o personagem com rigor, dedicando-me a estudar o perfil psicológico de Lumumba, a sua atuação como líder anticolonial do então Congo Belga, atual República do Congo, sua impostação de voz, seu gestual etc.

Ao final de três ou quatro meses de ensaio, fizemos a estreia no Teatro Municipal, para um grande público, dos maiores registrados para uma montagem local. O espetáculo foi objeto de uma crítica impiedosa, mas, para a minha alegria, a imprensa foi unânime em aplaudir a minha atuação, quer como Cristo, quer como Patrice Lumumba. Recém-chegado e desconhecido, elaborei de modo convincente o papel e fiz, de fato, uma boa interpretação, o que me valeria a escolha como “ator revelação do ano.”

Viajamos com o espetáculo e, um dia, o trouxemos a Iguatu. Apresentamos a peça dois ou três dias, no teatro do Colégio São José. Lembro que, na estreia, ocorreu-me um fato hilário: desativado para encenações, o palco do teatro não tinha estrutura adequada para um espetáculo de numeroso elenco, com uma parafernália de equipamentos de iluminação e som. As paredes do palco, que ficara diminuto, tantos eram os instrumentos de apoio, estavam repletas de pregos, de que pendiam pedaços de cordão. Condicionado a explorar racionalmente o espaço, entrei em cena arrastando-me por uma das paredes. Foi aí que me aconteceu algo inusitado em minha trajetória como ator. A minha roupa, uma túnica imensa e extremamente pesada, agarrou-se a um dos pregos e fiquei ali, catatônico, sem fazer ideia de como me ver livre daquele prego inoportuno. Como não pudesse ficar estático naquele pedaço de parede, depois de uns movimentos suaves para um lado e outro, resolvi sair ‘de frente’, o que foi a salvação do meu vestuário e da minha atuação.

No ano seguinte, voltei para o Ceará e passei a atuar no teatro de Fortaleza ao lado de Eurico Bivar, Cleide Quixadá, Pontes, Maurício Estevão, Fernando Piancó, José Tarcísio e outros nomes de destaque nas artes cênicas do estado.

Faria, inicialmente, A cadeira do dragão, de Bivar, interpretando um dos personagens centrais da peça. A minha atuação teve uma boa repercussão no meio teatral e a seu respeito saíram uma e outra nota através da imprensa. Eu usava uma barba à Stanislávski, o teatrólogo russo cujo método havia me conquistado por inteiro à época, o que me valeria uma referência jocosa do diretor Guaracy Rodrigues: – “Chegou a Fortaleza o Stanislávski tupiniquim!”

Guará, como era conhecido, em que pese a brincadeira maliciosa, antes que terminássemos a temporada com A cadeira do dragão, no Teatro da EMCETUR, formalizaria o convite para que eu fizesse A noite seca, de Geraldo Markan. Perguntei-lhe se o “Stanislávski tupiniquim estava à altura do papel”, ao que ele, com o sorriso bonachão, respondeu:

– Você é o melhor ator da nova safra!

Fiz a personagem Fernando, um padre progressista. Havia outro padre, reacionário, que Fernando Piancó interpretaria à perfeição. Acho que o talento de Piancó despontaria a partir daí, pois, naquela época, timidamente pedia que o ajudasse na elaboração da sua personagem. Grande amigo, Fernando Piancó.

A peça seria censurada. Na data da estreia, que não aconteceria, todo o elenco e o diretor Guaracy Rodrigues fizemos uma vigília de protesto diante do Teatro José de Alencar. Vestíamos preto e portávamos nas mãos alguns cartazes com textos alusivos ao ato de interdição da peça. Havia um público imenso e, sequenciadamente, alguém gritava uma palavra de ordem. A polícia ali, atenta.

Comunicado por alguém na abertura de um show no Centro de Convenções de Fortaleza, Caetano Veloso, bem no estilo impactante de dizer as coisas, interrompe a primeira música do espetáculo e declara:

– Quero me solidarizar com os atores da peça A cadeira do dragão, que foram impossibilitados de se apresentar hoje por conta de um ato condenável da Polícia Federal.

Foi aplaudido de pé.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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