Perfume de suor

29/04/2023

‘‘Boa noite, senhor Francisco’’ – o vizinho – cumprimentei-o meio acabrunhando subindo as escadas. Carregava comigo uma sacola com algumas garrafas e carne malpassada. A noite, não me recordo como estava: se nublada ou estrelada… Sei apenas que não corria vento. Tudo era ou parecia inerte

À porta uma mulher me esperava já com o olhar pesado de sono. Eu a olhei, sem reparar nela e no seu aspecto, além de sonolento, triste. Pus a sacola sobre a mesa e voltei para o bar. Lá chegando, tratei de recuperar a conversa perdida durante a minha efêmera ausência: Futebol!

–  Ahhh! Pro inferno com o futebol! – disse em alto tom ao considerar que não perdi nenhum assunto verdadeiramente valoroso. Claro que tenho minha preferência por determinado clube, mas, sinceramente, não deixei minha mulher em casa para tratar de um assunto medonho e pequeno como jogo. Se assim fosse, preferiria ouvi-la falar de bobagens similares: o capítulo da novela daquela noite ou sobre a sua irmã e irmãos problemáticos (que em nada me interessam).

Resolvi então que era hora de partir – o tema já me entediou nos primeiros cinco minutos de discussões banais na mesa – para qualquer lugar que não este bar. Sei lá: uma seresta, um bordel, um banco de praça… Sai sem destino, com pouca gasolina e muita vontade de sumir do mundo e das suas ofertas nada atraentes.

Acabei voltando pra casa e para as garrafas que lá deixei. Minha mulher já devia estar dormindo (o que me pouparia os ouvidos de mais assuntos intragáveis e/ou brigas iminentes). Acertei! Ela dormia profundamente.

Fui até a cozinha, peguei a primeira cerveja e recostei-me na cabeceira da cama. Enquanto bebia, notei que não reparava nela como antigamente. Ela, ali, quieta, com os olhos fechados, fez-me vê-la como antes (muito tempo mesmo) a via: um ser doce, de um amor mágico, que hoje se perdera no baú morno do cotidiano.

Pus uma música baixinha – mas não qualquer música – e voltei a simplesmente olhá-la. Fui tomado por um sentimento antigo, que achei que havia, de tanto relutar, fenecido de um todo. Vagarosamente, aproximei-me e afaguei os seus cabelos lentamente. ”Essa é a mulher pela qual me apaixonei” – disse para mim mesmo em pensamento.

Estranhamente, não havia em mim desejo carnal, mas um sentimento humano de querer apenas lhe afagar os cabelos e beijar-lhe os lábios pequenos e, naquele momento, mortos para as palavras rudes que me tiravam o juízo no decorrer do dia.

Ela acordou naquele instante e disse: ”já voltou, meu bem?” Senti-me péssimo pelo tratamento agradável e acolhedor daquela mulher (não me achei merecedor); da minha mulher. Tomei mais um gole e sai para a cozinha.

Ela virou-se e deitou novamente, me esperando para dormirmos juntos. Mas não voltei. Da cozinha fui para o quintal. Minha mão estava impregnada pelo seu perfume de suor. Aquele perfume já estivera no meu corpo, inúmeras noites, mas aquela intensidade olfativa me fez relembrar as noites que realmente eram vividas e dignas de um casal verdadeiramente completo um no outro. Acho que perdi a capacidade de amar, de aproveitar o outro e a vida.

Sai, tranquei o portão e disse, pela última vez: ”Boa noite, senhor Francisco”, – o vizinho – e sumi da vida que eu mesmo, de tanto escavar… enterrei.

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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