Quarto 73

30/12/2023

O quarto vizinho fora desocupado. Nunca mais ouvirei as discussões entre o paciente e a sua esposa. Ele também discutia bastante com o pessoal da Saúde: médicos, enfermeiras e técnicas em enfermagem. Era um sujeito que, assim como eu, com o passar dos anos, fora empedernecido pela indisposição física e mental. Ao menos o sujeito recebera a inusitada alta médica.

De onde estou, tenho acesso ao mundo pela janela do meu quarto e pelo aparelho celular, claro. Mas sinto falta de muitas outras coisas. E não me refiro à saúde. Sinto falta dos amigos que se foram. Ano passado, por exemplo, eu sequer podia imaginar que hoje estaria nesta situação deprimente. Embora os livros sejam uma excelente companhia e fonte de conhecimento, tenho a rara necessidade de, vez ou outra, socializar.

As épocas mais deprimentes do ano são o Natal (que felizmente já passou) e o Ano Novo (que logo chegará, infelizmente). Como não faço resoluções e sou pessimista; sei que o ano que se avizinha será pior do que este que finda. Aliás, a cada ano isso se mostrou uma realidade. A cada ano piora tudo. Ficamos mais velhos, mais doentes, mais sós, mais infelizes e menos humanos. Não há salvação para a humanidade. Somos um caso perdido, um descuido da natureza.

Minha esposa sempre reclama quando falo sobre. Diz que eu deveria ter mais fé em Deus e no espírito humano. Penso que cada um só pode ser o que a sua essência o condicionou. É algo indissociável de cada um em particular. Acho ridículo agir diferente do que sou. Não pretendo agradar ninguém, afinal. Se não procuro agradar aos meus filhos ou esposa, porque ela acha que eu deveria ser diferente com quem não me importo a mínima? E daí que não gostem de mim? Também não gosto deles. Estamos empatados e está tudo bem!

A enfermeira veio trocar o meu soro. É uma bela mulher. Deve ter sido ainda mais bela há uns quinze anos, talvez. Perguntei-lhe o que tinha depois do quarto 73 – que é onde estou internado. Ela disse que não havia mais quarto algum. Que o meu era o último. Isso me trouxe uma paz inigualável! Eu estava no último quarto. Seria essa a minha revelação?

Todos saíram e eu fiquei na paz celestial do meu quarto sombrio; e isso me acalmava bastante, embora houvesse dias em que tal situação me causava certa ojeriza. Fiquei olhando pela janela. Estava nublado e frio. Um ar gélido percorria o meu corpo, que ardia em febre. Vi uma mulher a acenar. Eu a conhecia, mas não sabia de onde. Seria a minha falecida vovó?

Aos que ficam, feliz Ano Novo!

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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