UMA PIEDOSA VELA

23/07/2022

“- Dizei-me, Mestre, pois tenho medo: onde aparecem os espectros e avantesmas?

– Nas estradas muito longas e principalmente nas igrejas.” Bernardus Umbra

Sim, sim. Sou um católico visceral. Não abro mão disso e tenho orgulho de dizer. Desde criança. E já passados meus quarenta anos, sei que envelhecerei neste credo até a morte. Minha mãe era da Legião de Maria. Minha família quase toda católica. Fiz Primeira Comunhão, recebi os Santos Óleos do Crisma, casei-me diante do sacerdote, confesso-me e comungo regularmente. À missa vou sempre, por gosto e devoção. Não só aos domingos, como pede a regra. Mas sempre que me sobra um tempo no trabalho. Várias, várias vezes, ao concluir mais uma jornada de labuta, diferente de tantos que têm o seu profano happy hour, termino o dia indo à santa missa. Definitivamente não concebo o ateísmo. Tampouco tenho qualquer simpatia por outras religiões.

O tempo pode passar, mas há eventos singulares na nossa vida que nunca haveremos de esquecer. Hoje faz justamente dez anos. Era a segunda-feira da Semana Santa daquele ano. A segunda-feira é o dia consagrado às santas almas que padecem no Purgatório. Que elas e nossa mãe, a Virgem Maria, ajudem-me a narrar com fidelidade o acontecido.

Se sois bons católicos, leitores, sabeis que as devoções da Santa Semana não se restringem somente à quinta-feira da Eucaristia, à sexta-feira da Paixão, ao sábado de Aleluia e ao domingo da Ressurreição do Senhor. Há que fazer jejuns e rezar durante toda a Quaresma. Eu assim fazia e sempre farei.

Naquela segunda-feira nada havia de especial na igreja aonde vou às missas e onde cumpro meus deveres de fiel católico. Eu fui à sagrada missa preparar-me para as consagrações e ritos da Paixão e morte de Cristo. Missa comum, semanal, pouco extensa. Havia poucos a assistir. Um começo de noite exatamente igual a tantos na minha existência humilde, de poucos incidentes. Era às seis da tarde a missa e estendia-se no máximo, como naquele dia, até às sete. Terminada a celebração, quase todos os fiéis foram embora. Apenas uns poucos, como eu, ficaram a rezar um pouco mais na capela do Santíssimo Sacramento.

Aqui permiti-me descrever, creio ser importante, a velha igreja em questão. É uma antiga construção. Solene, imponente. Muitos altares laterais, menores, cada um dedicado a um piedoso santo. Santa Terezinha, São Sebastião, Santa Rita, São Judas Tadeu e alguns outros. O altar principal tem fortes traços barrocos. Muitos anjos, Nosso Senhor ao centro e uma grande imagem de São José à direita de quem entra. É o padroeiro da região. Além das luzes de antigos lustres, há naturalmente velas. São essenciais para inspirar a contrição. A capela onde eu me encontrava naquela memorável noite tem a paz dos recantos sagrados. Um pequeno altar com cores escuras sustentando uma bela imagem de Nossa Senhora de Fátima trazia o consolo das bem-aventuranças e evocava a esperança do Paraíso. Eu sempre ia ali. Depois da comunhão, como se recomenda, e também ao final das missas. Assim como naquela segunda-feira.

Recordo perfeitamente que rezava um terço à Nossa Senhora de Lourdes. Estava terminando o quarto Mistério Glorioso quando subitamente todas as luzes se apagaram. Eram comuns àquela época as bruscas quedas de energia. Duravam horas até que se consertasse. Eu me vi sozinho, em completa escuridão, naquela enorme igreja. Até então estava muito calmo e me dirigi, pois tinha total familiaridade com o espaço, a uma das grandes portas laterais que ficava a trinta menos, mais ou menos, de onde eu me encontrava.

Silêncio absoluto. Como se não houvesse viva alma sobre a terra. Fui então tateando pelas paredes até chegar à porta. Quando a senti, percebi pelo tato que estava fechada. Fui à outra. Também fechada. Fui à porta principal. Igualmente cerrada. Todas fechadas. Dei-me conta de que havia demorado muito a rezar e alguém fechara tudo.

Naquele instante sobreveio um inesperado e aterrador sentimento de medo. De pânico, na verdade. Era um terror quase irracional, pois eu sabia que não corria perigo algum. Alguém em breve me tiraria dali. Mas o medo era avassalador, inexplicável. Já se viu o leitor em uma imensa e antiga igreja completamente na escuridão?

Hoje, passados esses anos todos, parece-me que foi tolice ter sentido tanto medo. Todavia, se os antigos diziam: ratio metus expulit, francamente penso que há medos, como aquele que vivenciei, que a razão não pode expulsar. Tentando depois entender, e entender-me, relembrei que quando criança, aos sete ou oito anos, minha mãe deixou-me uma vez em casa sozinho e foi às compras. Era cedo. Ela esperava voltar antes que eu acordasse. Mas eu acordei antes e fiquei desesperado quando me vi trancado em casa. Gritei muito e chorei. Recordo com detalhes. Teria sido este momento traumático quando criança que me fez padecer de tanto temor naquela segunda-feira? O adulto pode encontrar-se com os terrores da criança?

Eu estava a ponto de gritar por socorro, agarrado à porta, tentando inutilmente forçá-la. Via-me só, abandonado àquelas trevas, mesmo estando em um lugar sagrado. Desesperei-me ainda mais quando cogitei ter que passar ali a noite toda. Mas tive o meu alívio.

Do lado de trás do altar, a uns trinta metros de onde eu estava, vi um pequeno lume surgindo. Imediatamente meu coração se acalmou quando percebi que se aproximava de mim. Não tive medo. Ao contrário, senti paz e libertação.

– “Calma, meu filho. Já vou abrir”. Era um idoso, estatura mediana, barbas brancas, muito compassivo e terno com uma vela à mão em um velho castiçal.

O bom ancião então abriu e eu fui embora profundamente aliviado e com um estranho sentimento de felicidade na alma. Repito, não senti qualquer medo ou outro sentimento negativo. Somente paz.

Ao sair fui para casa. Mas naquela noite, tentando adormecer, reconstituindo os curiosos fatos aos quais fui exposto, dei-me conta de alguns bizarros detalhes que não havia percebido. Primeiro: por que não soaram no antigo piso da igreja os passos do velho? Ele parecia flutuar. Segundo: por que seu aspecto era tão vetusto, como se não fosse do nosso tempo? Terceiro: quem era ele, afinal? Como eu, frequentador assíduo daquela igreja há muitos anos, nunca o tinha visto?

Cansado, adormeci naquela noite a pensar em tais coisas. No dia seguinte, como facilmente pode supor o leitor, fui buscar informações sobre o ancião.

Falei com os padres, os empregados da igreja, os sacristãos, até mesmo com as velhas beatas que jamais faltaram a uma missa sequer. Nada. Ninguém conhecia ou ouvira falar sobre o misterioso velho com uma vela bendita à mão para salvar as pobres almas do desespero!

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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