A desventurada

06/04/2024

O que lhe trago hoje, amigo leitor, é a desventura de uma jovem como tantas por aí. Dizem que todos nós temos uma sina, um karma… algo pelo qual deva pagar, responder… essas coisas místicas das quais não acredito. Mas a minha opinião, aqui, pouco importa. O que interessa mesmo são os fatos, independentemente de o universo ou seres metafísicos terem ou não algo com isso.

Para começar, perdera o seu único filho, vítima de uma doença degenerativa ainda desconhecida pela moderna medicina. A doença o levou ainda no desabrochar da vida. A criança contava com 11 anos. Com a perda do filho e o abandono covarde e insensível do marido, a jovem desgraçada buscou abrigo na religião, mas sem o conforto divino esperado. Talvez por não ter buscado Deus como se deve, ela logo largou os rituais religiosos e abraçou a rua e o que ela poderia oferecer.

Desempregada, desabrigada e sem perspectiva alguma, a moça intercalava corpos noite a dentro em troca de algum para a sua subsistência. A vida a colocara no ostracismo, na invisibilidade social de um dia pra noite. Foi como sair do paraíso e adentrar ao inferno. Ela dormia, como forma de fuga da realidade, o quanto podia, mas era constantemente acordada pelos carros e transeuntes da praça – que era, agora, a sua morada, como é a de tantos invisíveis sociais.

Da última vez que a vi, percebi que a vaidade também já havia abandonado a pobre criatura. Seus cabelos desgrenhados lhe davam um aspecto clássico das bruxas dos filmes de terror. Suas roupas sujas e manchadas em nada lembravam as suas vestimentas de outrora, que, embora não fossem caras, de alta-costura, eram sempre limpas e conservadas.

Ela aprendera da pior forma, que a vida não é justa, e que nem sempre ‘‘aqui se faz, aqui se paga’’, pois viu muitos sendo felizes, ainda que indignos, não merecedores do status do qual estavam gozando alegremente. Ficaram impunes dos seus malefícios. E ela, que nada fez por merecer, perdera tudo. Perdeu o bem mais precioso: seu filho. Perdeu a dignidade, a sua casa, a sua família, a sua vida boa. O acaso conspirou para a sua degradação? Ela muito pensava, por anos, mas nunca soube o porquê de tamanho castigo!

O mundo, meu caro amigo leitor, em nada está preocupado com ela, comigo e contigo. Somos incapazes ante as armadilhas do tal destino, se é que ele existe. A nossa desventurada morreu sem ter uma vida digna; morreu sem conhecer o sabor legítimo da felicidade. Ela se foi enquanto morta em vida, enquanto inofensiva e indesejada. Nem uma só pessoa se fez no seu funeral. Enterrada como indigente, praticamente.

Hoje, foi ela, amanhã, poderá ser você ou eu o próximo desventurado martirizado pelo existir neste mundo implacável. ‘‘Que a terra lhe seja leve’’, como diria o poeta-filósofo Belchior!

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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