Entrevista: Klériston Monte – Economista e professor

Recentemente o Governo Federal iniciou campanhas na mídia divulgando os benefícios da Lei 13.874 (Lei de Liberdade Econômica). A Lei aprovada em 2019 reduz a burocracia, principalmente para os pequenos empreendedores que queriam montar um pequeno negócio e muitas vezes eram impedidos por causa das exigências dos órgãos controladores de documentos, papéis e mais papéis, o que só fazia gerar mais angústia e espera. Para esclarecer alguns aspectos desta relativamente nova legislação, o jornal A Praça convidou o economista Klériston Monte

11/09/2021

A Praça – A Medida Provisória nº 881, conhecida como MP da Liberdade Econômica, editada pelo presidente da república em abril de 2019, por meio do Congresso Nacional, deu origem à Lei 13.874, conhecida como ‘Lei da Liberdade Econômica’. Agora o governo está usando a mídia para publicitar a nova legislação e seus benefícios. Qual a compreensão do senhor sobre esta Lei?

Klériston – A Lei Nº 13.874 de 20 de setembro de 2019 cita no seu Art. 1° que “fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, do parágrafo único do art. 170 e do caput do art.174 da Constituição Federal”.

Verifica-se, assim, que a Lei possui dois grandes sustentáculos constitucionais. O primeiro repousa nas disposições gerais do Art. 1º quando são apresentados os fundamentos da República Federativa do Brasil e dentre eles, temos “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. Os outros constam no Título VII – Da ordem Econômica e Financeira – estabelecidos pelos princípios gerais da atividade econômica, que, conforme o parágrafo único do art. 170, assegura “a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” combinado com o art. 174 que determina que o Estado deverá exercer, na qualidade de agente normativo, regulador e conforme a lei, os atributos de fiscalização, incentivo e planejamento, precípuo para o setor público e indicativo para o setor privado. Assim é igualmente importante e se faz mister a sua aplicação e interpretação, pois o seu raio de abrangência é extensivo no ramo direito alcançando o “direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente”. Portanto e diante do exposto, a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, também denominada Lei da Liberdade Econômica, versa sobre temas que ultrapassam os escopos da Economia propriamente dita e a despeito da integração entre os vários ramos do conhecimento humano, a sua vinculação econômica se dá com o Direito Econômico.

A Praça – O país vive um cenário desolador com os altos índices de desemprego, a estagnação econômica e uma das piores cargas regulatórias do mundo. Nesses quesitos o Brasil só consegue se igualar a países com pouquíssima liberdade econômica como Serra Leoa, República Democrática do Congo e Uzbequistão. Nesses aspectos o que muda com a nova Lei?

Klériston – De fato o Brasil não está bem colocado no ranking no quesito abertura de negócio. O Banco Mundial desenvolveu desde 2002, através do Doing Business, um projeto que objetiva identificar, monitorar e comparar como se dá a regulação utilizável nas empresas locais num universo de 190 países, sendo o seu resultado final formado por vários indicadores, dentre eles a facilidade para fazer negócios, abertura de empresas, obtenção de alvarás de construção, registro de propriedade, etc. Neste sentido, após apreciação do relatório supra citado, a conclusão inevitável é  a de que o Brasil detém a “qualidade” de ser um país detentor de um ambiente de negócio fortemente regulado, logo frustrador das atividades geradoras de riquezas, ultimato esse verdadeiramente comprovado, na medida em que no ano de 2019 ocupávamos a 109ª posição e no ano 2020, caímos para a  124ª posição. Quanto às mudanças advindas da nova lei, podemos externá-las sob dois enfoques: i) princípios norteadores; ii) princípios práticos. O próprio Art. 2º da Lei Nº 13.874/2020 elenca os princípios que foram alterados nesta e são eles: “I – a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; II – a boa-fé do particular perante o poder público; III – a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e IV – o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado”. Já no sentido prático suas modificações foram igualmente representativas, quais sejam: i) i) carteira de trabalho digital; ii) pontos de trabalho ( o registro de entrada e saída de no trabalho passou a ser obrigatório nas em empresas com mais vinte funcionários); iii)  extinção de alvará para atividades de baixo risco (costureiras, cabeleireiros e as estabelecidas por ato Executivo); iv) substituição do e-Social (as obrigações fiscais, previdenciárias e trabalhistas passaram a ser informadas digitalmente); v) mudanças nos horários das atividades econômicas (ficam liberados em qualquer horário, inclusive feriados, salvo restrições constantes na própria lei); vi) documentos públicos digitais (substituição dos documentos originais pelos documentos digitalizados). Resumidamente o cerne central da Lei é a minimização da participação estatal na economia, especialmente nas microempresas e nas empresas de pequeno porte, por um lado, e potencialização das realizações de negócios dos CNPJs entre si, por outro.

A Praça – Uma mudança relevante está relacionada com a diminuição dos abusos de poder, que antes da Lei eram cometidos por fiscais do município e do Estado, e que agora serão mais limitados. Ou seja, os fiscais (estaduais e municipais), não poderão mais ‘aterrorizar’ os pequenos comerciantes, muitas vezes criando situações diferentes para casos iguais, simplesmente por questões de conveniência ao seu ‘bel prazer’ de abusar ou tirar vantagens. O senhor concorda com esta tese?

Klériston – Parto da essência de que todo servidor público observa e pratica os princípios fundamentais da administração pública, ou seja, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Nesse sentido qualquer ato administrativo por ele realizado que ceife um desses fundamentos básicos representa uma anomalia ou desvio de função, seja abuso de poder, “aterrorização” ou até perseguição e já existem “remédios” prescritos no ordenamento jurídico para tais fins e que, uma vez extrapoladas às prerrogativas funcionais, devem ser provocadas por quem de direito, sobretudo na atualidade em razão do maior nível de informação e de esclarecimento da parte prejudicada. De maneira que para o verdadeiro servidor esta tese não se sustenta.

A Praça – Com a nova legislação em vigor há uma expectativa da criação de 4 milhões de empregos diretos nos próximos dez anos e há também expectativa em relação ao Brasil ocupar uma melhor posição no ranking dos países com mais liberdade em sua economia. O senhor acha isso possível atendendo a esses prazos?

Klériston – Qualquer projeção em economia é passível de análise mais minuciosa e requer prudência, sobretudo quando consideramos um período de tempo de dez anos. Me parece não ser tarefa hercúlea a geração de 4 milhões de empregos diretos em uma década, que, em outras palavras, representaria 400.000 empregos anuais e de igual maneira que a modificação do nosso Brasil no ranking do relatório Doing Business seja consequência única da “Lei de Liberdade Econômica”. Em economia a expectativa é condição sine qua non que existe no consumo, no investimento, nos gastos públicos e nas exportações líquidas e daqui a pouco ela pode se metamorfosear e criar um outro ambiente de negócio que torne o país mais atrativo, que estimule o investimento e o desenvolvimento econômico. Assim, caro leitor, serei provocativo. Tudo o mais constante: a) desemprego e inflação altas; b) política econômica reconhecidamente voltada para o agronegócio e capital financeiro; c) instabilidade política e institucional; d) reduzida expectativa de investimento direto estrangeiro; e) grave crise sanitária (pandemia); f) dificuldade energética, dentre outros; o Brasil hoje teria capacidade de criar o volume de emprego citado na pergunta acima?

A Praça – Na visão do senhor como economista, esta nova Lei poderá reverter a favor da economia do país, e do cidadão, a situação de ‘subserviência’ do pequeno e médio investidor às exigências do Estado, privando-os muitas vezes de exercer uma atividade econômica, com medo do poder fiscalizador desses órgãos regulatórios?

Klériston – Toda e qualquer alteração na legislação brasileira que potencialize, incentive e provoque o crescimento da nossa economia, por um lado, e que eleve da forma mais abrangente possível, logo não excludente, o nível da qualidade de vida do cidadão, por outro, são e serão sempre bem-vindas. Não resta dúvida que o Estado brasileiro possui um ambiente de negócio com representativo grau de regulação, todavia também é isonomicamente inquestionável que a nossa Constituição, que fundamenta-se no Estado Democrático de Direito e os demais instrumentos jurídicos existentes na nossa legislação, se constituem nos primordiais defensores dos direitos individuais e coletivos. Portanto o pequeno e o médio investidores estão inseridos nesse contexto, logo entendo que o Estado não se constitui num obstáculo à abertura de novos negócios, e se assim proceder fere frontalmente o Estado Democrático de Direito, expressando, destarte, falha objetiva, logo carecedora de correção. Não vejo razão para rotular o Estado como setor impedidor do crescimento econômico, como também não designo ao segmento privado idêntico atributo, o que vislumbro com relativa urgência é a necessidade de uma pactuação entre ambos – o público e o privado – voltada para uma agenda comum na perspectiva da alavancagem do crescimento contínuo e sustentável da economia e consequentemente da melhoria da qualidade de vida de todo brasileiro.

A Praça – Antes da nova Lei, era ‘burocrático’ para o pequeno comerciante iniciar uma atividade econômica e mais ‘burocrático’ ainda encerrar. O senhor acha que isto também muda com a nova Lei, ou seja, quando o pequeno investidor quiser encerrar um negócio ele poderá fazer isso sem tanta exigência dos órgãos controladores?

Klériston – Efetivamente a burocracia é uma “qualidade” que sempre esteve presente na vida do brasileiro, assim como no modo da atuação dos investidores e, infelizmente, parece ser característica contida no nosso DNA. Tal constatação se mostra evidente, pois em 1979, no governo do então Presidente João Figueiredo, já existia referido entendimento quando foi criado o Ministério da Desborucratização. A bem da verdade não produziu efeito significativo, entretanto institucionalizou a necessidade do Estado buscar meios de arrefecer ou até exterminar seus efeitos no nosso cotidiano e, reitero, neste aspecto pouco mudamos, conforme ficou evidenciado no Doing Business quando ao apreciar os indicadores que formam o relatório, num universo de 190 países, o Brasil está na 124ª posição. Concretamente a Lei de Liberdade Econômica possibilita a livre abertura e o rápido encerramento de determinado negócio, contudo é importante ressaltar que essas peculiaridades não são extensivas a todas as atividades e sim àquelas que são consideradas de baixo risco, nesse sentido a decisão de abrir ou encerra o seu negócio fica condicionada ao interesse de quem de direito.

A Praça – Sendo direto e objetivo: para o senhor qual é o espírito da lei?

Klériston – Vejo com muita clareza a repetição de inúmeros preceitos legais que já existiam no nosso ordenamento jurídico. Por exemplo: o inciso IV do Art. 1º da Constituição Federal estabelece que a livre iniciativa é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil; o Art. 2º da “Lei de Liberdade Econômica” no seu inciso I estatui a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas, logo já assegurada na Constituição. Efetivamente o espírito da lei converge para um dos fundamentalismos da economia de mercado: a ideia do Estado mínimo, ou seja, que economia seja regida pelas forças de mercado, procura e oferta, e sem a participação do Estado. Ponto de vista que eu não entendo ser verdade intocável ou o Santa Graal na teoria econômica. O mercado é importantíssimo sim, mas o protagonismo do Estado não pode ser descartado, na medida em que um não sobrevive sem o outro e enquanto isso não for compreendido a economia brasileira padecerá de crescimento elevado, contínuo e sustentável, tarefa que não deve recair nos ombros de um ator apenas, seja o investidor, seja o Estado.

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