O encontro inusitado no Bacia das Almas

26/08/2023

No centro esfumaçado da cidade, um bar de aspecto sombrio e atmosfera carregada se destacava. O letreiro enferrujado rangia ao vento, revelando o nome “Bacia das Almas”. Era um lugar onde a noite parecia nunca se dissipar, e os encontros mais improváveis podiam ocorrer sob o véu da escuridão.

Naquela noite, a penumbra abraçava o recinto enquanto dois homens distintos ocupavam um canto escuro do bar. De um lado, com um olhar penetrante e vestindo um sobretudo negro, estava Edgar Allan Poe. Seus olhos, tão profundos quanto os abismos de seus contos, varriam o local em busca de inspiração obscura. Do outro lado, inclinado sobre o balcão e com uma garrafa de bourbon à sua frente, estava Charles Bukowski, sua barba desgrenhada contrastando com a formalidade casual de seu traje.

Enquanto os murmúrios dos frequentadores do bar preenchiam o ar, Poe e Bukowski trocaram olhares breves, quase como se reconhecessem uma centelha de familiaridade nos olhos um do outro. O silêncio entre eles era denso, como se palavras não fossem necessárias para comunicar o entendimento mútuo de suas almas atormentadas.

Finalmente, Poe quebrou o silêncio, sua voz carregada de melancolia. “Senhor Bukowski, vejo em você um colega das palavras, alguém que mergulha nas profundezas da experiência humana com uma pena afiada como a própria lâmina de um poema sombrio.”

Bukowski ergueu uma sobrancelha e soltou um leve sorriso, levando o copo de bourbon aos lábios. “Parece que você conhece minha reputação, Poe. Mas posso dizer o mesmo de você, um mestre na arte de destilar o terror e a beleza em cada linha.”

Poe acenou com um aceno respeitoso, o canto de sua boca se curvando ligeiramente. “A vida e a morte, o amor e a dor, todos esses elementos que tecem o tecido de nossas histórias. E aqui estamos nós, nesta encruzilhada de almas atormentadas.”

Bukowski deu um gole em seu bourbon e soltou um suspiro profundo. “Somos como navegantes perdidos em mares de palavras, tentando dar sentido a essa existência confusa. Às vezes, sinto que as letras são as únicas âncoras que temos.”

Enquanto suas conversas fluíam, o bar parecia encolher em torno deles, como se o tempo e o espaço se tornassem elásticos sob a força de suas palavras. Eles compartilhavam histórias de suas próprias lutas, de suas amores perdidos e vitórias conquistadas nas páginas empoeiradas de seus escritos.

A noite avançava, e a garrafa de bourbon entre eles ia diminuindo gradualmente. Poe e Bukowski riam agora, uma risada carregada de tristeza e compreensão. No canto escuro do bar, dois espíritos literários encontraram refúgio um no outro, como velhos amigos que nunca haviam se conhecido antes.

Enquanto a aurora se aproximava e os primeiros raios de luz começavam a penetrar as janelas do Bacia das Almas, Poe e Bukowski sabiam que aquele encontro era efêmero, assim como as histórias que eles contavam. Mas eles também sabiam que, naquele momento fugaz, tinham encontrado um companheiro de jornada nas palavras, alguém que compreendia a solidão e a beleza de ser um escritor perdido entre as linhas e entre os goles de bourbon.

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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